Nesse tempo ainda se podia dizer que uma pessoa era preta. Ou negra, como preferirem. Por mim tudo bem. O preto é preto e o branco é branco. No único dos cerca de 120 países onde pus os pés, só num é que puseram um papel à frente, à entrada, no qual estava lá a pergunta, direta: cor da pele? Escrevi: normal. Ser preto é normal. A menos que estejamos a falar sobre algum daqueles divinos negros. Como Fausto. Aí preto é pouco. São retintos como se fossem feitos de baquelite.
Fausto nasceu pobre, algo que era normalíssimo nos pretos dessa altura nos cafundós do Maranhão, como era o caso de Codó, onde veio ao mundo em 1905. Vamos e venhamos: o filho de Dona Rosa, nêga fulô, nasceu mas é miserável, sem uma côdea certa de pão seco para comer ao fim do dia. Não admirava que fosse magrinho como um fio. Dona Rosa gostava do seu menino tanto que tanta magreza e os dias de fome a afligiam até ficar com um buraco fundo, fundo, ali entre a terceira e quarta costela, naquele sítio onde costuma ficar o coração. Pegou em Fausto e foi à procura de uma vida melhor. Que digo eu? Vida melhor?! Foi à procura de uma vida e ponto final.
A bola e Fausto eram de uma intimidade quase sexual. Alguém viu o garoto jogar num baldio qualquer do Rio e levou-o para o Bangu. Fausto tinha futebol para jogar e deitar fora. Num instante estava no Vasco da Gama. E, em seguida, em Espanha, no Barcelona. E depois do Uruguai, no Nacional de Montevidéu. Em 1930 fez parte da seleção do Brasil que participou no primeiro Mundial de futebol.
Seis anos mais tarde, recebeu o chamado do Flamengo. Ou melhor, de José Bastos Padilha, amigo íntimo do jornalista Mário Filho, que deu nome ao Maracanã. Ambos brotavam ideias como água de uma fonte. Ideias sobre ideias. A de Padilha era a de fazer do Flamengo um clube totalmente profissional e o mais poderoso do Brasil. A de Mário era a de popularizar de tal modo os jogos entre Flamengo e Fluminense que lhes deu o nome de Fla-Flu. O povão gostou e guardou a expressão para sempre.
Para construir a sua equipa-maravilha, José precisava de jogadores-maravilha. Foi a Montevidéu convencer Fausto dos Santos a regressar ao Brasil, algo bastante fácil até porque estava em rutura total com o Nacional. Em seguida contratou Leônidas da Silva e Domingos da Guia, mais duas Maravilhas Negras. Padilha e o Flamengo não tinham qualquer problema em serem conhecidos pelo clube dos pretos. Ainda por cima porque os seus pretos eram um bocado melhores do que os brancos dos outros.
Tendo assinado contrato com o Flamengo em 1936, Fausto caiu na asneira de morrer em 1939, o que deixou o sucessor de José Bastos Padilha, Gustavo de Carvalho, furibundo, deitando fumo pelos olhos. Sentiu a morte do jogador como uma traição aos seus planos de o vender ao São Paulo, tal como tinha feito com Leônidas, e ganhou ao falecido um rancor monstro.
Vindo lá da miséria de Codó, Fausto nunca foi bicho muito sociável. Por todo o lado onde passou, arranjou sarilhos com quem podia. Em Espanha, por exemplo, quando ficou no Barcelona com o seu companheiro de equipa do Vasco, o guarda-redes Jaguaré, em 1931, depois de uma digressão dos vascaínos pela Europa. Não gostava de espanhóis, dizia.
E para ele chegava. Nunca abriu um sorriso nem quando marcava um golo, de tal ordem que foi despachado para um clube suíço, Young Fellows, para ver se curava, no sopé dos Alpes, o seu mau feitio e o princípio da tuberculose que viria a matá-lo. Também não gostava de portugueses. De passagem por Lisboa, entreteve-se a atirar baldes de água pela janela do quarto, encharcando os passantes e insultando-lhes as famílias até à quinta geração se se atreviam a dar-lhe troco. Coisa chata que meteu polícia, esquadra e o diabo a quatro.
Fausto dos Santos podia ser um trombudo de pai e mãe, mas era bonito p’ra cacete vê-lo encher o peito, receber a bola como se fosse apenas mais uma parte do seu corpo, driblar adversários para dentro ou para fora, e fazer passes milimétricos para onde bem lhe apetecesse. «Fausto falava pouco, ia guardando o que tinha de dizer, de repente explodia, lá vinha tudo. Vingava-se dando gritos no vestiário, dando pontapés no campo», escreveu Mário Filho.
«Entrava em São Januário de chapéu no alto da cabeça, o paletó desabotoado, a camisa sem um botão, deixando aparecer um pedaço da barriga preta. E olhava para todo mundo de cara amarrada, para ver se alguém não gostava… Fausto, se estava doente, nem se queixava, bom ou doente tinha de entrar em campo. Fausto não conversava, metia logo o pé. Vinha uma bola alta, ele levantava a perna como numa bailarina, as travas da chuteira dele passavam raspando pela cara do jogador do outro time. A bola era de Fausto, não era de mais ninguém». Depois passou a cuspir sangue. Deram-lhe uma campa rasa. Com uma cruz de madeira. A miséria também era dele. Como a bola.