É só incompetência ou é também insensibilidade?

Dir-se-á que a praga dos incêndios não é um exclusivo nacional e que, em virtude de circunstâncias várias, dificilmente controláveis, se verifica na generalidade dos países com características climáticas semelhantes a Portugal. 

Se apenas seguirmos as agendas dos órgãos de comunicação social concluímos que a invasão da Ucrânia é um acontecimento distante, perante a qual passaremos quase incólumes, que a pandemia já foi vencida, graças à ‘competência’ e dedicação do nosso abençoado Governo, que a inflação é um fenómeno passageiro que não justifica um apoio público forte às pessoas e aos setores mais fragilizados, e que as trapalhadas da administração pública fazem parte do ‘normal’ pois repetem-se e renovam-se a cada 24 horas.
Mas, não é exatamente assim.

A guerra da Ucrânia continua cruel e demolidora, com consequências gravíssimas sobre as economias europeias (o dólar já está cotado a um valor superior ao euro); a pandemia, apesar de ocultada por uma política de comunicação controlada, não está erradicada (o país continua com números relativos muito negativos no contexto europeu e mundial); a inflação, o terrível imposto oculto, veio para ficar pois tem causas muito para lá das consequências da guerra; e a sucessão das trapalhadas, embora, para já, ironicamente suportadas pela opinião pública, impede uma gestão política coerente e amiga do desenvolvimento da economia.

Mas, apesar de todas esses fatores se manterem sem solução à vista e serem fortemente condicionantes da vida dos portugueses, o que predomina (de certo modo compreensivelmente) é o noticiário sobre a desgraça dos incêndios e as fantasiosas soluções que os responsáveis governamentais vão apresentando para serem aplicadas … nos próximos anos.

É evidente que o problema dos incêndios, que se repete ciclicamente, deve merecer uma atenção especial até porque é agora o tempo de dizer, de forma sonora e determinada, BASTA, exigindo políticas públicas que resolvam os problemas estruturais e não continuem a tratar os portugueses como atrasados mentais.

Não é legítimo, correto ou moral, responsabilizar o ‘Governo de turno’ por esta desgraça anual, mas é dever e é imperativo exigir ao ‘Governo de turno’ que explique politicamente o que está a fazer e, nomeadamente que dê testemunho do que fez ou previu, para resolver o assunto, nos anos antecedentes a cada uma das trágicas épocas de verão.

Com efeito, 2017 já foi há cinco anos e, seguramente que 2017 proporcionou conhecimentos e avisos suficientes para que pudesse ter sido elaborada uma verdadeira política preventiva.

Essa foi, aliás, uma das exigências do Sr. Presidente da República que, até chegou a hipotecar a sua carreira política à boa resolução do problema. Será que se esqueceu ou afinal o célebre efeito ‘mata borrão’ é mais aplicável a si próprio (na medida que absorve todas as asneiras do Governo e neutraliza a sua hipotética responsabilização) do que ao primeiro-ministro (PM) a quem explicitamente se referia?

Dir-se-á que a praga dos incêndios não é um exclusivo nacional e que, em virtude de circunstâncias várias, dificilmente controláveis, se verifica na generalidade dos países com características climáticas semelhantes a Portugal. É verdade, mas também é certo que a incidência de incêndios no nosso país, segundo os vários especialistas que se pronunciaram, é bastante superior à verificada na Grécia, na Itália, na França e na Espanha, países que tem uma área geográfica muito superior à portuguesa.

Aparentemente alguma coisa não bate certo e quando muitas coisas não batem certo é preciso que sejam esclarecidas e que o sejam, preferentemente, através dos responsáveis políticos, incluindo o PM, que devem estar permanentemente sujeitos ao dever de ‘accountability’, uma condição essencial para uma democracia plena poder funcionar.

Ora realmente não tem sido isso que se tem passado e, não pondo em causa o caráter, a dedicação e a competência do ministro da Administração Interna (principal responsável, depois do PM, por esta gestão), a mensagem política não aparece, substituída que tem sido por considerações de natureza técnica contraditórias sobre meios, recursos financeiros e efetivos que, em vez de mobilizarem e moralizarem as populações atingidas, mais parecem destinar-se a encontrar bodes expiatórios e desculpas esfarrapadas para o futuro.

E o que é (ainda) mais grave é que quando a mensagem ‘política’ parece estar, finalmente, a ser tentada, se ouvem declarações lastimáveis e absolutamente insultuosas para os cidadãos anónimos que sofrem material e animicamente as consequências desta desgraça anualmente revisitada.

Afirmar que (vá lá) ardeu menos 30% do que o modelo matemático e o seu algoritmo previam, como disse a secretária de Estado Patrícia Gaspar ou que, depois da desgraça na Serra da Estrela o património florestal da zona ia ficar melhor, como declarou a ministra Vieira da Silva, é um insulto imperdoável e uma falta de sensibilidade incompreensível, perante os quais não se entendem os silêncios de Costa e Marcelo.

É certo que, como recordava há dias o insigne jornalista Oliveira e Silva, Portugal, que tem sido o território do quase, transformou-se no país do «incha, desincha e passa» e tem sido com essa cultura que os principais responsáveis tem contado para que a opinião pública esqueça as suas debilidades e os seus recorrentes disparates.

Só que esta estratégia primária não pode enganar a grande maioria dos cidadãos durante muito mais tempo.

E um dia o país real acorda.