Os holandeses (e os portugueses) de Rentes de Carvalho

Como definir os holandeses? Podemos fazê-lo pela tríade das suas paixões – a religião, a política e o dinheiro – ou optar, como José Rentes de Carvalho, por instantâneos do quotidiano.

Por Pedro Miranda

Se a verdade é o último tabu (que resta), a dor de ser português, manifestada, sem pompa nem farfalhos, por José Rentes de Carvalho, em recente “Primeira Pessoa” (programa da autoria de Fátima Campos Ferreira na RTP1), foi um desses testemunhos pungentes que fixamos e que permanecem connosco, quase como assombração, dias a fio: os caminhos, inteiros, de lama e palha estragada, para onde se lançam, das janelas, os dejectos de casa; os milhões de moscas que, de imediato, se precipitam sobre o local; as carradas de morcegos que, finalmente, pousam sobre a combustão. Estevais, a Mogadouro, interior norte, anos 30, de Vossa Excelência, Senhora Professora, como passou?

Tenha um bom dia!, antes do braço estendido à saudação fascista, não fosse o Inspector cirandar por ali e tirar a matrícula. Estevais que, um dia, terá sido povoação de 700 habitantes, hoje, no máximo, reunirá sete, oito dezenas de cidadãos que, “chegada a sua hora”, irão à terra no mais despojado, no mais pobre dos cemitérios, sem cruzes nem nomes a identificar quem foi a sepultar: “foram gerações e gerações a pão, água, cebola e couves. Mais nada!”.

De aí, ficou uma “gente dura”, com certeza capaz de carinho, mas também de todas as formas de violência (que não se concluam em homicídio); gente obrigada a passar fome, mas nunca atreita a revelá-lo e, muito menos, a pedir (“aqui, não se pede nada a ninguém”).

Do Porto, ali ao lado de Gaia onde nascera o rapaz, e se regalara com o verdadeiro cinema dos barcos a atracar ao Douro, e de toda a fauna que dali emergia na sua meninice, ao mais remoto interior nordeste, eram 12 horas de comboio; mas até isso, nas últimas décadas, foi tirado aos que vivem rodeados de penedos e de estradas que não levam a lado nenhum (isto é, que a esmagadora maioria dos habitantes locais não podem aproveitar); removidos, por fim, desses trens, bem comum, sem apelo nem agravo, sem sensibilidade nem empatia, os carris (“isto não interessa a Lisboa e também, talvez, ao Porto”).

À chegada desse pouca-terra-pouca-terra, era uma alegria, uma festa (seja como for, eis a casa – mais composta e cheia de alma de novo); sendo o percurso inverso gerador de emoções igualmente exacerbadas: a avó a chorar e a gritar ao ver o comboio não apenas partir, mas ao avistá-lo, ainda, durante uma intensíssima meia hora, num adeus contínuo aos montes, para angústia do passageiro (que perante tal suspiro, desgraçada miséria e atual desertificação e abandono dos poderes públicos, “temos o sol! Eu não posso contrariar o Senhor Presidente [da República]! Temos o sol!…”, diz, derradeiro soco no estômago, ter salvo a descendência de ser portuguesa).

Em terra de uma pobreza ultrajante e de um regime opressivo, gerara-se a vontade e o delineado plano de partir. Houve Paris, Brasis, mas foi Amesterdão o lugar de poiso. Nascido em 1930, José Rentes de Carvalho estabelece-se em Amesterdão desde 1956. Ao fim de décadas de convívio com os holandeses, mesmo recorrendo – recusando, pois, uma injusta generalização a todos (os concretos rostos neerlandeses) – a uma entidade abstracta, “o povo holandês”, contando com uma “impressão” mesmo que reiterada, dia a dia, em exemplos ilustrativos, afirmando, acima de tudo, a boa fé do empreendimento, e a consideração e gratidão pela terra de acolhimento feita sua (também), o escritor, professor universitário, funcionário da embaixada do Brasil, colunista em jornais, participante em programas de televisão, dá-nos o seu retrato dos holandeses.

Um retrato que, de modo explícito, inúmeras vezes, implícito, noutras, sempre traz a inevitável comparação, e ponto de partida, com a lente lusa da qual parte – afinal, os holandeses podem ser “frios” ou “organizados”, a partir, inevitavelmente, de certa noção (pátria) de “calor” ou de certa “balda” que se tem como pressuposto ou a priori, surpresa e pasmo a partir, pois, do diferente (evidentemente, não há um lugar asséptico, neutro, sem temperatura, a partir do qual se produza qualquer juízo de tipo “científico”). Há um conjunto de elementos tomados ao papel que se referem ainda ao início dos anos 70, mas balanceados e ponderados, em especial nos derradeiros capítulos, com as possíveis mudanças ou transformações de anos recentes.

Amabilidade excessiva gera desconfiança E como são, afinal, os holandeses? Podemos, num repente, defini-los pela tríade das suas paixões: “a religião, a política e o dinheiro são a trindade das suas paixões”); ou optar, diversamente, por partir de instantâneos do quotidiano, para revelar os habitantes dos Países Baixos – como o daquele episódio em que um holandês leva, em viagem de mais de 100 quilómetros, o nosso escritor até à cidade na qual este vive, mas apenas até à zona de transportes públicos, porque isso de ir deixar a pessoa à porta de casa é demasiado custoso, não se justifica, e uma amabilidade excessiva é coisa que gera desconfiança.

E esta postura, atitude, mundividência, aliás, é passada de geração em geração, de pais para filhos, com os primeiros a reconhecerem como os segundos foram bons discípulos de excelentes mestres quando aportam, agora, os progenitores ao eléctrico ou comboio, em vez da gasolina e o carros gastos em curvas e deambulações que reclamariam os papás à porta de casa – como são industriosos e poupados os nossos meninos!…

Rentes de Carvalho levara de Portugal a incrustada memória de uma mãe e de um pai autoritários, o incomum sentimento de ser, também e por sua vez, pai deles (a dado momento), mas, igualmente, registos caseiros e comunitários de partilha e cuidados. Nesse sentido, a Holanda foi um choque. Entre pais e filhos, reina o “egoísmo”: um egoísmo nas relações dos progenitores entre si; dos pais para com os filhos; dos filhos para com os pais; dos filhos – dos irmãos – entre eles.

O investigador, aqui com certa carga de antropólogo, observa, nas famílias holandesas, em permanência, “brusquidão de maneiras”, “falta de carinho e ternura”, um “laissez-aller”, uma indiferença entre todos. Talvez por isso, “as crianças são de uma agressividade, falta de educação, de normas e valores que surpreende”.

Na Holanda, o Estado Social que José Rentes de Carvalho vai encontrar cobre todos os problemas e dificuldades por que um cidadão pode passar: um Estado rico e generoso. Organizado. Mas mais, em não sendo o Estado, restam, ainda, todo o tipo de associações, religiosas ou laicas, sempre prontas a resolver qualquer entrave ou obstáculo que se coloque ao holandês.

Na Holanda, a bem dizer, a dizer com aquele conhecimento de uma experiência de uma miséria que não conseguia esconder chagas e frios, não há pobres: “onde estão os pobres? (…). Pobres como nós em Portugal temos, com fome, com frio, em andrajos, mostrando as chagas para que lhes dêem pão, não há”.

Este conforto holandês, na interpretação de Rentes de Carvalho, é, curiosamente – dada uma certa reputação histórica contrária ao que agora se narra –, avesso ao risco, remete e contribui para o cidadão cheio de prudência, sem sentido de aventura ou ousadia (quanto ao suposto maior individualismo holandês, neste âmbito, é idêntico ao de outros povos; o mesmo se diga, quanto à corrupção, garante Rentes de Carvalho). Quem se pretende contravencional, nas artes ou em qualquer outra dimensão da vida, exige, primeiro, o pequeno-almoço subsidiado.

Quem vinha da ardósia, sala de aula mal equipada e pequena, reguadas a esmo, orelhas a arder, cana da Índia como mal menor – “uma sala escura com duas janelas que davam para um pátio sombrio e sujo (…) quando nela entrávamos às nove da manhã, com a sacola onde carregávamos a lousa, o caderno e o livro do abecedário, sentávamo-nos no chão à espera da professora (…) de costas contra a parede e o sentimento de animais acuados numa jaula. Ela chegava apoiada ao símbolo da autoridade, uma cana negra de mais de dois metros, com que mais tarde nos zurziria as orelhas sem precisar de se levantar da única cadeira que, atrás da única mesa, constituía o mobiliário.

Rezado um padre-nosso pelos nossos pecados e pedido perdão a Deus pelos maus pensamentos que tínhamos tido – sim, sim aos quatro anos – entrávamos sem demora na tabuada e nas primeiras letras, sentados orientalmente à maneira de alfaiates, as pernas cruzadas, as costas doridas, a lousa sobre o apoio instável dos joelhos. Três horas cada manhã, três horas cada tarde, recreio nenhum, e a cana que nos malhava a cabeça ou nos despegava as orelhas, só porque mexíamos ou porque, fartos, dávamos uma cotovelada no vizinho.

O dia terminava com outro padre-nosso, e se o Paraíso realmente existe, as almas quando lá entram devem sentir uma alegria igual à que sentíamos quando se nos abria a porta da rua. A escola primária não foi melhor e a professora, que também o tinha sido de meu pai, de quem guardava más recordações, porque ele um dia lhe tinha atirado um tinteiro à cabeça, vingava-se em mim.

Por um nada eram lapadas, orelhas de burro espetadas na cabeça, por um ou outro erro de ortografia pancadas de palmatória que faziam inchar as mãos, deixando-as roxas e inutilizáveis durante dias. A cana-da-índia, que ela também usava, parecia-me um castigo aceitável e benigno” –, oh, como estranhou a escola holandesa (à qual confiou as filhas): munida de jogos, brincadeiras, onde a criança era acarinhada, castigos nenhuns ou sem significado, lugar tão aprazível que até quando o bom do pai sugeria à descendência uma constipação ou gripe manhosa para ficar a sós com esta, a escola vem já a seguir, tal malandragem era desdenhada pela criançada que desejava o prazer escolar.

Xenofobia latente À chegada, e ao longo dos anos, Rentes de Carvalho sentiu muito o apontar do dedo aos estrangeiros, por parte dos holandeses, uma xenofobia latente, mais ou menos mascarada (os sindicatos fogem de aceitar trabalhadores estrangeiros; o emigrante, com a cumplicidade de todas as instituições, confina-se “quieto, agachado e com medo”; o estrangeiro que se queixe do patrão é demitido no mesmo minuto, entregue à polícia, remetido de volta). E os últimos anos, de resto, não trouxeram progresso moral neste domínio: o racismo parece, agora, ser exibido, até, com maior à-vontade.

Os latinos são a “raça branca suja” (ainda deste jeito identificados nos manuais de geografia holandeses nos anos 60 os habitantes a orla do Mediterrâneo, incluindo Portugal), de gostos baixos – comida e sexo [esta mentalidade lembra-nos alguma fala de um dirigente holandês, na última década, durante e após o período da troika em Portugal, sobre os usos e costumes do Sul europeu?] – e “quem é este turco? Fora!”, ouve-se, frequentemente, nas lojas.

As igualdades e fraternidades são apenas anunciadas da boca para fora (os holandeses têm uma propensão para se julgarem melhores, mais honestos, mais desinteressados e até mais bem-intencionados do que o seu próximo) e, se puder ser, o aproveitar-se de alguém que está em uma situação de inferioridade para obter maior lucro, está na agenda (“há na língua holandesa uma expressão que constantemente se ouve: de zakelijke aanpak, a qual tem o significado literal de «à maneira do comércio». Além de ser corrente e aceitável nas relações entre as pessoas, a frase justifica também que se tire o máximo proveito de tudo e todos, mesmo, e sobretudo, de quem não tem força ou ocasião para se defender”).

Calculando tudo, os holandeses tudo apreciam em função do lucro e da utilidade (bebés programados para nascerem em dezembro para obterem benefício fiscal; a típica conversa de casal: ganhar, poupar, não gastar). O observador, ainda assim, sopesa: a Holanda pertence a esse leque de “sociedades ricas” que são “por isso mesmo impiedosas”, sendo, assim, “preciso cavar ainda com mais dureza e afã” do que em terras pobres.

O holandês, que anota tudo, não se coaduna com fantasias, descuidos, indolências; bem ao invés, os holandeses são fanáticos do planeamento, pátria da programação, da precisão e do arrumo. Berram que querem ser medianos; discutem calmamente os porquês das coisas; cumprem o que prometem; são submissos e dobrados à autoridade; sérios, desconhecem a arte da cavaqueira e, aliás, qualquer conversa assume, neles, um ar sério e pesado; doutoral, a fala escorrega para o sermão e a pompa. O idioma holandês reflete pachorra, sendo que os seus falantes tendem a usá-lo de forma rude.

Comida terrível, nem uma obra-prima na literatura Se há coisa que o holandês não é, é gourmet. A comida é terrível, nela há uma enorme pobreza cultural que vem a ser a de reduzir a culinária à satisfação de uma necessidade. Nesta terra, comer não é uma arte nem um prazer. O leite é omnipresente nas diferentes refeições, ao contrário dos temperos, cuja míngua impressiona mesmo o mais austero dos provadores.

Na Holanda, num restaurante – nos quais os modos dos empregados remetem, imediatamente, para o despachar sem cortesias nem amabilidades – não se faz sentir a alegria de viver. Em realidade, a alegria de viver não é uma marca dos holandeses; neles, não se deteta tal característica (e, por comparação, diga-se, o holandês “não é mais feliz, nem mais alegre” do que o português).

O holandês leva a reserva e o auto-controlo a extremos: a dor é, nele, reprimida, raramente expressa em lágrimas. Gosta da imagem pública, correcta e fria, ar fechado. Ser delicado, uma fraqueza e um risco; ser atencioso é chamar a si a desconfiança. Nos transportes e noutras aglomerações, utiliza o corpo, em constantes encontrões e empurrões, para ganhar a vez ou lugar. Fisicamente forte, o holandês é, porém, de poucas valentias e arrojos.

Competente, protegido, curvado diante do perito, organizado, com governos que ora tendem um bocadinho para a direita, ora um bocadinho para a esquerda, com infindáveis associações (“o país é de cima a baixo uma teia superiormente tecida de organizações que eficientemente se ocupam de tudo”), o neerlandês é sombrio, carrancudo, sorrisos poucos gargalhadas nenhumas, ingénuo, ganancioso, manhoso, apaixonado pela estabilidade, pela posse, pelo lucro. Concebe mal horas inactivas, a perda de tempo, um pecado; povo de eterna energia. Nas Universidades, a primazia é dada à Economia, às Finanças e à Gestão – as Letras vêm em último lugar. E, diga-se, na subjectiva apreciação de Rentes de Carvalho, nem uma obra-prima se encontra na literatura holandesa das últimas décadas.

A religião de infância Os diálogos, na Holanda, vão, inevitavelmente, dar a Deus (para lá da política, preços das coisas, férias). O terreno da religião é, ali, “cheio de encalhes e susceptibilidades”. Sobre a fé, “o holandês não aceita gracejos, ligeirezas, faltas de respeito”. Numa palavra, nos Países Baixos Deus e a religião “são pesados, sombrios, despidos de alegria”. Confessa-se o escritor: “tenho uma relação com Deus mais baseada no medo do que na fé”. E, sobretudo, acrescenta, possui uma imagem de Deus e da religião muito diferentes da dos holandeses.

Nessa descrição da religião de infância, nos anos 30 do século passado, no interior norte português, contam-se páginas de requintado encanto, ironia, crónica de costumes: “Talvez caiba aqui contar um pouco como fui criado na fé da Santa Madre Igreja, Católica, Apostólica e Romana. Acabado de nascer levaram-me ao baptismo, e a primeira lembrança é a das orações que minha avó me ensinava a recitar, não só padres-nossos, ave-marias e credos, mas outras mais complicadas, difíceis de aprender de cor, cheia de invocações a santos que eu não conhecia, carregadas de mistério, assombreadas ainda mais pela cozinha onde eram rezadas, sobretudo no Inverno, alumiada pelo azeite dos lampiões e pela enorme fogueira do lar. Em torno do lume, sentadas nos escanos ou em banquinhos, as mulheres da família e as vizinhas, quase todas vestidas de luto pela morte de parente, devoção ou promessa, responsavam desfiando os rosários.

E eu, aconchegado no regaço da avó, sonolento com o calor da lareira, mal lhes notava o rosto, tremia de medo quando uma ou outra erguendo os olhos para o tecto e de mão postas, invocava a alma de um falecido ou os favores dum padroeiro. Terrificado, esperava a aparição de entes sobrenaturais, de figuras barbudas com túnicas coloridas como eram as imagens da igreja. Mesmo à luz do dia, o tecto alto e escuro sempre me pareceu encerrar mistérios e vultos capazes de, dum momento para o outro, virem por ali abaixo aos gritos e com ameaças.

Além das orações aos santos «verdadeiros», havia outras para as quais a mulheres se concertavam com muitos bichanares e preparos de ervas, azeite virgem, sal do mar e a ajuda do Livro de São Cipriano. Juntavam-se então na cozinha, as portas cuidadosamente trancadas, e quebravam o mau-olhado das crianças, sobretudo o meu, porque andava sempre comido de bruxas e feitiçarias. Tudo isso era feito em segredo e a ocultas do padre, que nas missas de Domingo trovejava contra as crendices, informado por uma ou outra comadre, que nos apertos da confissão ou para lhe ganhar as boas graças e indulgências grátis, punha tudo em pratos limpos.

Nas doenças e aflições ofertavam-se aos santos umas tantas prendas em dinheiro, trigo, velas de cera, e quando no Verão a falta de chuva e a barbaridade do sol ameaçavam queimar as colheitas, tirava-se para fora o andor de São Lourenço, que ao ombro de oito raparigas garantidas virgens era passeado pelos montes com grande procissão de gente cantando ladainhas e pedindo o favor de mandar água a cântaros, o que algumas vezes aconteceu.

Uma tarde, por ter cometido não sei que traquinice, fui levado por minha avó preso pelas orelhas diante desse mesmo São Lourenço, e ali na igreja, para mim enorme, sem outra presença viva que a nossa e os olhos muito negros das imagens, foi o santo por ela invocado para me dar emenda e a protecção de que eu – teria então oito anos – tanto carecia. A mim ordenou que me atirasse de joelhos e esperasse o tempo de dez padre-nossos e dez ave-marias para que São Lourenço se apiedasse.

Assim fiz, de cabeça baixa, chorando, garantindo que não me meteria noutra, que dali em diante seria modelo de perfeição. O que não fui, nem aliás parece que o padroeiro tenha levado a mal o não ter eu cumprido o prometido. A dez de agosto é a festa do santo. Há romaria, missa cantada, sermão, arraial, uma procissão de arromba, as ruas atapetadas de ramos verdes e flores, as varandas e janelas enfeitadas com colchas e panos de seda, todos de cores vivas, a ponto que o colorido e os dourados dos andores fazem esquecer as paredes sem cal e a miséria e tristeza que ali se escondem.

Vão nela rezando os doentes e os precisados. As viúvas e os órfãos ajoelham atrás das portas cerradas, para que com as suas aflições não perturbem as alegrias e esperanças dos outros. Nessa procissão fui algumas vezes vestido de anjo e mais tarde, quase homem, também tive a honra de pegar ao pálio, por baixo do qual ia o padre, segundo a misteriosa cruz do altar-mor. (…) A imagem que em garoto me fiz de Deus é a que ficou, e se por vezes, raciocinando, a quero afastar, é ela que reaparece nas horas de medo e aflição: Deus é um sexagenário saudável, de face bondosa e barbuda, bigode, cabelo castanho que lhe desce em anéis até aos ombros. Veste uma túnica cor de creme que lhe chega aos pés, cingida por uma corda de seda em volta da cintura.

Sobre essa túnica tem uma outra sem mangas, igualmente comprida e de um vermelho escuro. As mãos de Deus estão sempre erguidas, como para proteger ou abençoar, e não me lembro de tê-lo jamais imaginado de costas ou de perfil, nem a andar, mas sempre de frente e parado. A gente pede e Deus às vezes concede, mas em certas ocasiões, talvez porque somos tantos a pedir e assim causamos atrasos, a satisfação só chega quando há muito esquecemos o pedido. Por isso nos descuidamos de agradecer, o que Ele leva a mal, fazendo desandar a roda da fortuna. Esse é o meu Deus.

Um Todo-Poderoso com variações de bom e mau humor tal um avô rabugento, capaz de tudo perdoar ou afligir sem razão, e a quem nós também não levamos a mal a inconsequência e o peso das aflições com que nos agrava. Por isso falamos d’Ele e o tratamos como pessoa de casa, um familiar que tem os seus repentes, a quem é preciso tratar com respeito e carinho, a quem se dão presentes e oferendas. Ora esse Deus, que umas vezes favorece e outras repreende ou castiga, mas com quem sempre é possível conversar está habituado às maneiras subtis e tortuosas dos homens, esse Deus é muito, mas muito, diferente daquele que vive na Holanda (…) Vai-se à missa para orar, mas igualmente para facilitar o andamento de um requerimento na câmara, um processo no tribunal, um passaporte no Registo Civil. Porque o padre, bem falado, adoçado com presentes, é uma excelente e eficiente engrenagem.

Mas longe dele o pretender, em nome de Deus, meter demasiado o nariz naqueles nossos negócios onde não é chamado, certo de que o risco seria muito e o resultado nulo. (…). Porque para nós, portugueses, em geral o padre pouco mais é do que um filho do povo que, com inteligência ou manha, valendo-se das facilidades educacionais da Igreja, escapou à miséria. Ora atribuir-lhe demasiada intimidade com Deus seria subestimar este último. O padre que trate da sua vida, mesmo que seja à custa da nossa. Dele se esperam os sermões bem pregados, as missas solenes, as procissões de arromba com andores bem enfeitados, o espectáculo”.

O convite da rainha Não há muitos países em que a salvaguarda da liberdade seja tão conseguida como na Holanda, a solidariedade entre vizinhos, o sentimento de pertença e de viver em conjunto ainda pode ser apreciado em Amesterdão. Após a publicação de Com os holandeses (em Portugal, pela Quetzal, 2009; reedição em 2017), a Rainha chamou o autor ao almoço no Palácio real, endereçando os parabéns pela fotografia que da obra emanou do povo holandês. E só por essa altura terá sido descoberto pelo seu país – “quando tinha sido descoberto 40 anos antes!” pelos holandeses – o que dói imenso a quem regressa a Portugal, em primeiro lugar, pela língua – em segundo lugar, pelas pessoas –, e a esta, à língua portuguesa, sente tudo dever e a ela tudo devotar.