Henrik Pontoppidan. A difícil invenção de um mundo sem deus

Um clássico é um clássico, e Per, O Afortunado é o grande clássico da literatura dinamarquesa, tendo o seu autor, Henrik Pontoppidan, recebido o Nobel da Literatura em 1917.

Texto de Paulo Bugalho

Se será difícil imaginar Camilo arregaçando as mangas à secretária de São Miguel de Seide, no sagrado móbil de oferecer à pátria a obra das obras, o romance final que finalmente remisse as falhas de tantas noveletas e folhetins a que o gosto da época, e a necessidade de prover à prole, o obrigavam, afundando-o, e aos seus futuros leitores, numa torrente onde os escolhos melhores colidem, com fragor, contra arenito de ocasião, as obras de corte puro contra todo o cortejo de calhau pequenos e mal esboçados – se na agitada vida de Camilo seria difícil encontrar a tentativa de subir acima da linha de água deste aluvião, já não nos espantaríamos tanto de encontrar o Eça metido nessa escalada, subindo os degraus da menoridade para se alcantilar à visão panótica de Os Maias, decidido a boleá-lo, ao romance, até que tornasse a obra representativa de uma época. Um clássico é isto e seria ingénuo pensar que são feitos por acaso, simplista achar que é a receção do livro que o levanta a marco inelutável de uma época, fugindo por vontade própria ao fito, necessariamente humilde, do escritor. Pois escritores há que não são humildes e tudo farão para, cunhada a obra, a venderam como clássica aos seus contemporâneos: pois se era já como obra clássica que a imaginavam, observando-a ainda informe na poeirenta oficina.

Assim, seríamos capazes de jurar (não temos provas), com Os Maias, assim, propomos nós, com este Per, o Afortunado. Clássico de incursão social, romance ambulatório e amplo, que atravessa sob os nossos olhos (frequentemente em comboios ruidosos) os quatro cantos de um país em transição (e, por vários capítulos, os cantos da Europa ela mesma, numa revisão da Grand Tour oitocentista), Per é uma espécie de romance tutelar, o tipo de livro para o qual se criaram as expressões magnífico friso, grande vista panorâmica, voo abrangente no tempo e no espaço, fresco social, etc, etc. Publicado entre 1898 e 1904, com imediato sucesso, é, com o ciclo de romances O Reino e dos Mortos e A Terra Prometida (por publicar em Portugal) o veio principal de uma obra que haveria de trazer a Pontoppidan o Nobel (1917) e uma posição prestigiada nas letras dinamarquesas. O país desenhado por Pontoppidan é uma Dinamarca ainda desconfortável com as derrotas militares frente à Prússia e Áustria, que determinaram amputações no território, mas que tenta olhar em direção a esse futuro luminoso onde, afinal, os rastreios deste novo milénio a colocariam, transfigurada aos olhos do leitor atual na sociedade mais feliz do mundo, ao lado das restantes nações nórdicas. Um equilíbrio atingido hoje, a acreditar nos métodos usados para o qualificar, mas que pareceria longínquo a Pontoppidan e coevos. A metamorfose industrial corria já nas potências vizinhas, ouvia-se em volta o rugir de transformações culturais e religiosas que queriam dar início à modernidade, o público e os políticos dinamarqueses contorciam-se com as dores de um parto que parecia não terminar, acabrunhados de serem ainda a periferia da Europa, gente agrária e parada, sob o domínio de um luteranismo pervasivo que não mostra vontade alguma em libertá-la. É frustração e adiamento, a mímica que se despega de muitas destas personagens, visão particularmente instrutiva para o leitor português, que talvez se admire de ver refletido no espelho de sociedades que se habituou a ver como prósperas os medos que tolhem certa visão lusa de hoje, a mesma resignada tristeza com as falências do espírito prático e a desadaptação inata às regras do progresso industrial (ou de como diferentes sociedades pode comungar das mesmas incertezas, em passos diferentes das suas cronologias).

Habitat perfeito, este, para modelar Per Sidenius, protagonista e ponto de perspetiva principal sobre os relevos complicados deste mundo, o qual, depois de ter paliado com compressas frias as dores que lhe atormentam o umbigo infantil e a cicatriz deixada por ter arrancado a frio o cordão que o prendia à terra, à família e à capela comunitária, resolve abandonar a povoação natal, uma aldeia comum perdida na fundura típica de um fiorde na Jutlândia (provinciana província do interior dinamarquês e coração do mundo rural), fugir ao patriarca bíblico, senhor da fúria, do castigo, do fervor e do ascetismo mais mesquinho, e partir numa viagem que o traga a si mesmo, mas sobretudo lhe dê acesso à moderna máquina ascensora do mérito social, uma que possa carregá-lo ao topo da sociedade brilhante de Copenhaga e lhe conceda a admiração que sempre achou tributo lógico à dureza metálica e cortante da sua inteligência e à teimosia do seu carácter. A arrogância é muita, mas a fome de liberdade também, e é por aqui que o livro afunda, deixando para trás o desenho etnográfico e as múltiplas personagens representativas, que o teriam conformado às regras do grande romance social (paixões pendulares por irmãs de sinal antagónico, descrição impaciente dos múltiplos modelos do aristocrata, dos vários modos do burguês endinheirado, das declinações infindáveis da condição judaica, umas mais abonatórias do que outras, da desfaçatez eterna do jornalista sem escrúpulos, que sobe incólume pelos galhos elásticos do grande pinheiro nórdico, alcançando sem demoras a trave mestra do poder político dinamarquês).

O herói, como herói que se preza, é indeciso, e transforma-se aos nossos olhos. Um homem das ciências exatas, como o matemático Ulrich de Musil em O homem sem qualidades, um engenheiro como Hans Castorp em A montanha mágica, de Thomas Mann, um progressista cego às belezas naturais, sem pejo em derrubá-las para lhe gravar nas costas as prerrogativas da técnica e do conforto – a quem, de dia para dia, comovem a pureza silenciosa das montanhas e a clara honestidade dos ermos. Um ateu feroz, um apóstata – a quem depois de algumas desilusões com a espécie humana, passam a seduzir os cânticos simples de uma capela de aldeia e o retorcido sofrimento de um pároco semienlouquecido por demasiadas, rigorosas asceses (cujas ovelhas o abandonarão, ao fim de tantas dúvidas e tanto sofrimento, até que ele se abandone a si mesmo, pendente por uma corda da trave do seu próprio teto). Per é femeeiro, mas exigente, bem-apessoado mas criterioso com as mulheres que se cruzam no seu caminho: passa com leveza mas depois desgosto da mais simplória das senhoras para o intelecto acerado, radicalmente sexualizado e exigente de um judia rica e cerebral, a cujos ardores e honestidade acaba por não corresponder, pelo menos em moeda tão firme. Grande projetor de pontes e barragens, génio de quem às tanta se espera que invente um futuro perfeito para uma sociedade eminentemente rural e ligada ao solo, eis que a própria lógica o faz arrepiar caminho, mudando-lhe a existência só porque a consciência o aconselha a seguir de perto a raiz dos seus próprios pensamentos e o peso da sua herança. “Tenho de confessar que, pelos vistos, não tenho vaidade ou ambição suficientes para contrariar tanto a minha maneira de ser nesse aspeto. É de certo um defeito, mas não um defeito que considere particularmente lamentável. “, diz, numa carta escrita a Jakobe, uma das personagens fortes da história, resumindo esta oscilação entre a calma de uma colocação escura, imóvel, segura, mas desprovida de inteligência (o seio fundo e quente da terra) e o exterior esclarecido onde a religião e a família já não podem comandá-lo, mas tudo se afigura frio, duro e desconfortável.

Os romances cumprem quando inesperados, ou pelo menos quando não optam por torcer a realidade, o sentimento do tempo, por mais frio que ele se apresente, às expectativas do leitor. Per, o homem que fizera descer sobre si toda a sorte do novo século, parece retroceder, revirado por dúvidas: “Não era inútil continuar a lutar?” pensa, instigado pela carta de uma ex-amante, a Jakobe a que já aqui aludimos, a única personagem na história capaz de reunir confiança e lucidez, os dois polos opostos da modernidade. “Nos últimos dias, recordara-se amiúde de uma ocasião em que ele se comparara, em jeito de chalaça, com o sinistro anão do conto de fadas que, tendo saído das profundezas da terra por um buraco de toupeira, para assim viver entre as criaturas deste mundo, descobriu que não suportava a luz do Sol e depressa se enfiou de novo, aterrorizado, no seu buraquinho.” Filho de pregador outra coisa não será, ainda que por momentos tenha conseguido aparentar outro trajeto, esboçado algo totalmente oposto, um gesto todo ele antagonista. Dessa oscilante vacilação, os rodopios loucos de quem luta contra si próprio, ora se puxando a barba ora se apertando o pescoço, nasce o movimento verdadeiramente moderno deste livro, que não é só o da luta da técnica contra a natureza, mas a do homem contra deus, ou, se quisermos ser mais precisos, a do homem contra si mesmo. Não vale dizer quem ganha esta luta: só sugerir que, no final, a grande bênção recebida não é propriamente aquela que nos instigaria a fornecer a Per o cognome com que o autor decidiu distingui-lo: afortunado, talvez, mas não seguramente pelas razões que havíamos imaginado. Vale, também, terminar com uma advertência: falamos de um clássico, sim, mas de um clássico moderno.