Annie Ernaux. A crueldade necessária para mudar de vida

A escritora francesa de 82 anos, que se descreveu como ‘uma etnóloga de si mesma’, tornou-se na passada quinta-feira o primeiro autor cujo registo primordial é o das memórias a ganhar o prémio Nobel da Literatura, sinalizando a forma como este género, nas suas múltiplas derivações, se tem vindo a impor ao romance.

Ter as lembranças em ordem é bem mais difícil do que parece. Obriga, desde logo, a reaver um conjunto de experiências a partir desse pó que se levanta de um momento vivido e que, assim que o tentamos absorver, se vê dominado por um sopro, forçando uma interpretação limitada das coisas. Chegar ao fundo das experiências, mesmo das mais íntimas, compreender a verdadeira articulação e o sentido daquilo que se viveu, daquilo que marcou um período das nossas vidas, pode tornar-se uma ambição excessiva. Na maioria dos casos, os romancistas limitam-se a um tráfico de sensações, a lançar um seixo que saltita pela superfície das coisas sem nunca chegar a afundar-se e a revelar algo de mais profundo sobre o mundo em que vivemos ou a própria condição humana. Vão arredondando o horizonte que os rodeia, lançam sobre o conjunto de circunstâncias que identificamos como características do nosso tempo o véu dos lugares-comuns, a fim de que o rosto do real nos pareça amenizado. Mas e se o romance, de súbito, se desobrigasse de uma série de condicionalismos, redefinisse os seus valores, se impusesse uma responsabilidade social absolutamente comprometida e em conflito com uma era embriagada pela sua lógica implacável? Esta quinta-feira, ao ser-lhe anunciado que tinha sido galardoada com o mais prestigiado dos prémios literários, a escritora francesa mostrou-se surpreendida primeiro, e logo depois frisou que se tratava de “uma grande responsabilidade”, a de “testemunhar com rigor e justiça em relação ao mundo”.

No anúncio feito em Estocolmo, o secretário permanente da Academia Sueca, Mats Malm, vincou que a escolha do júri quis distinguir a autora de 82 anos pela “coragem e agudeza clínica com que põe a descoberto as raízes, os efeitos de alienação e os constrangimentos coletivos da memória pessoal”. Ernaux é a primeira mulher francesa a vencer o prémio – juntando-se a uma galeria de 15 homens –, e é apenas a 17.ª escritora, em 121 anos, a receber o galardão. “Ernaux examina, de forma consistente e a partir de diferentes ângulos, uma vida marcada por fortes disparidades de género, língua e classe. O seu caminho para a autoria foi longo e árduo”, nota o comunicado do júri assinado pelo poeta e crítico literário Anders Olsson, que adianta que “a ambição de rasgar o véu da ficção a levou a uma reconstrução metódica do passado, mas também a uma tentativa de escrever um tipo ‘cru’ de prosa na forma de diário, registando acontecimentos puramente externos”. A justificação, como notava o El País, parece saída da boca da própria Ernaux, que sempre defendeu que a literatura deve atuar como uma punção, cabendo ao escritor aperfeiçoar-se no uso do bisturi, operar o corpo de um paciente que, muitas vezes, não é ninguém senão ele mesmo, de forma a chegar ao fundo de uma determinada questão.

Não se trata de remover algum tumor, de lidar com certos traumas pessoais, não há uma proposta terapêutica, mas antes um compromisso com a verdade, assumido com uma tal seriedade que, muitas vezes, os livros de Ernaux parecem escavações que compõem o quadro da sua própria degradação. Como escreveu Françoise Sagan, “na nossa época, para um espírito agudo, o ridículo, ‘ser ridicularizado’, é qualquer coisa de sublime”. A literatura deve assumir uma posição desequilibrada, “procurando a queda como quem procura um repouso”, enfrentando essa desilusão imensa de todos os homens, a perda da ilusão de não ser o centro de coisa nenhuma, de tal modo que mesmo as nossas recordações mais íntimas não são outra coisa senão um ponto de acesso à trama geral, à experiência coletiva. Porque só um consolo saber que não se é único depois de essa ter sido uma terrível e secreta aspiração. Depois de se ter sobrevivido a essa afronta. Tendo publicado a sua primeira novela em 1974, uma década depois Ernaux deixaria cair o leve véu de ficção entre o que escrevia e aquilo que tinha vivido, passando a assumir a herança do materialismo sociológico de Pierre Bourdieu. O resultado foi uma obra que deixa claro como a imaginação e a recordação utilizam processos bastante similares, e, ao longo das décadas seguintes, explorou essa condição de ridículo que demonstra os aspetos em que não é mais possível traçar uma fronteira entre o individual e o coletivo, numa abordagem em que a história e a sociologia são tão instrutivas como as memórias pessoais. Indicativa disto mesmo é a epígrafe de Ortega y Gasset num dos seus livros mais célebres, Os Anos, a qual serve como um território de inscrição para o resto da sua obra: “A única história que temos é a nossa, e ela não nos pertence.” Se o júri do Nobel parece ter-se simplesmente rendido à proposta literária de Ernaux, o comunicado sublinhava como já lhe chamaram “a primeira autobiografia coletiva” e que o poeta Durs Grünbein o classificou como um “épico sociológico” revolucionário sobre o Ocidente contemporâneo.

Trazer a memória para o centro da análise da realidade não é escolha inocente. No fundo, a obra de Annier Ernaux foca-se na perda da inocência de uma ilusão após a outra, e não é outra coisa senão um exercício voltado para o abandono dessas noções a que nos agarramos como a um corrimão quando construímos a nossa narrativa pessoal. É fácil assumir que o prémio Nobel cedeu à pressão de todas essas propostas inscritas no regime da autoficção, um subgénero que, se deve tanta da sua popularidade à obra de Ernaux, ela mesma passou a vida a renegá-lo, recusando qualquer leitura que encerre a sua obra no campo da mera biografia. Ora, a forma como se demarca dessa forma de pornografia em que o “eu” se propõe sempre como o eixo de uma série de desgraças, a grande vítima, exigindo menos uma admiração pela sua arquitectura narrativa e pela capacidade de investigar a fundo este ou aquele fenómeno humano, e mais uma espécie de piedade demonstra apenas o lado pernicioso de uma cultura ao serviço da exposição e da forma mais degradada de heroísmo que se podia conceber. Vale a pena lembrar, a este propósito, as palavras de Sagan, autora francesa que Ernaux assume ter devorado às escondidas. “Boa literatura é aquela em que não pensamos no autor. Infelizmente, a moda é o oposto. Quando lemos “Os Irmãos Karamazov”, não pensamos em Dostoievski. Este é o grande defeito da literatura actual: os escritores querem desenhar-se a si mesmos, em vez de desenhar os seus heróis. É pretensioso e lamentável. É bem mais visível nos homens agora. Se a escritora pensa em si mesma, isso transparece. Se gosta de escrever, não pensa em si mesma. Simplesmente não pensa. Quando os escritores eram anónimos, a literatura era muito mais viva; agora, os escritores estão sempre a tentar falar de si nas suas obras. Muitas vezes é algo narcisista. É muito mais interessante ler um livro em que o escritor se expressa por meio de heróis, em que não haja essa preocupação complacente. Agora, a personagem do escritor é mais importante do que a das suas personagens. As pessoas lembram-se melhor de mim do que das minhas personagens.”

Também Javier Marías foi muito crítico deste subgénero, e nunca se cansou de atacar esse regime de identificação que permite a todos conduzir algum processo de denúncia e invadirem a literatura com as suas pretensões de teor mais político ou social. “Que a vida está cheia de agruras já estou cansado de saber. Não preciso que me venha cada um de vocês relatar as suas pormenorizadamente. Mas reconheço que sou um caso isolado, porque é evidente que não se escreveriam tantos livros destes se não houvesse uma enorme procura. Creio é que isto se deve à necessidade imperiosa e constante de muitos contemporâneos – chega a ser uma um vício ou uma dependência – de se sentirem bem consigo mesmos, de se apiadarem em abstrato, de ler injustiças e agravos e pensar do autor ou narrador: ‘Pobrezinho ou pobrezita, quanta empatia sinto por eles, porque, afinal, sou tão boa pessoa’. E isto ao mesmo que pensam daqueles que lhes arruinaram a infância ou a própria existência: ‘Que sacanas, que cruéis, que horror’.”

E convém recordar que se a invenção do romance foi um passo artístico tão audacioso e desafiador das convenções isso se deve a uma forma plena e radical de liberdade que este oferece ao autor, o de criar um reflexo do mundo, uma visão tanto quanto possível autónoma e, por isso mesmo, capaz de estabelecer um paralelo e formular uma crítica que depende acima de tudo de conseguir estabelecer um território em que se suspende o juízo moral. Como lembra Milan Kundera, “suspender o juízo moral não é a imoralidade do romance, é a sua moral. A moral que se opõe à inextirpável prática humana de julgar imediatamente, sem parar, de julgar tudo e todos, de julgar sempre seguindo em frente e sem compreender. Esta fervorosa disponibilidade para julgar é, do ponto de vista da sabedoria do romance, a mais detestável estupidez, o mais pernicioso dos males. (…) A criação do campo imaginário em que o juízo moral fica suspenso foi um feito de um alcance imenso: só aí podem desabrochar as personagens romanescas, a saber, indivíduos concebidos não em função de uma verdade preexistente, enquanto exemplos do bem e do mal, ou enquanto representações de leis objetivas que se afrontam, mas enquanto seres humanos autónomos que se baseiam na sua própria moral, nas suas próprias leis.”

Tendo isto por base, é evidente que a proposta literária de Annie Ernaux vira as suas costas à tradição do romance herdada do século XIX, essa estética hoje ameaçada antes de tudo pela perda de leitores, essa que mantém o seu prestígio, mas que é mais como uma peça de museu, e que nos obriga a inclinarmo-nos perante o génio de Balzac, que montou a sua complexa urdidura de um género que elevou os efeitos do jornalismo a um artifício estupendo, a uma ficção soberana capaz de capturar uma visão do mundo, seduzindo de tal modo os leitores que se afirmou com uma força social imensa, dotada de um poder de sedução hipnótico, comparável àquele que viria a assumir o cinema no século seguinte. Mas há muito que esta estética entrou em crise, e ainda que mantenha excelentes cultores, poucos foram capazes de ultrapassar as críticas que lhe foram feitas no início do século XX, podendo dizer-se que o que resta do romance são algumas resistências tão admiráveis e, ao mesmo tempo, reaccionárias. Recordemos que na crítica de André Breton ao romance, que ele qualificava como um género inferior, foram alinhados esses sintomas de uma arte que se deixou dominar por uma série de convenções desgastantes, as quais ao invés de repensar a ilusão da realidade, se limitam a imitá-la, a propor uma relação “inutilmente particular” com os acontecimentos a partir de um mesmo sistema em que tudo se solve num regime de aparências, com o estilo a ser o da “informação pura e simples”.

Ora, Annie Ernaux parece desejar que o romance possa uma vez mais retomar a influência que há muito perdeu, como um instrumento de recusa e contestação de uma visão do mundo que hoje nos é imposta pelo regime tão difuso e disseminado da propaganda ideológica que remete para uma visão de progresso sem fim à vista. Não se trata já de impor um certo juízo moral através de romance, mas de fazer dele um território onde se suspende essa forma de catecismo transversal, esse ambiente em que o homem vê a sua vida traduzida em dados estatísticos, e em que a rapidez se impõe como o valor supremo do mundo embriagado pela técnica, pela litania do consumo, pelo regime da produção intensiva, por modelos de sociedade em que a política é substituída por metas imperiosas prosseguidas por uma burocracia opaca e omnipresente.

Leia-se uma passagem de Os Anos, bastante instrutiva a este respeito. “A cada instante, a par daquilo que as pessoas consideram ser natural que se faça e se diga, apar do que se julga certo pensar, quer seja através dos livros, dos cartazes no metro ou de histórias engraçadas, existem também todas as coisas sobre as quais a sociedade passa em silêncio sem ter consciência disso, votando a um mal-estar solitário todas e todos aqueles que se apercebem dessas coisas sem as poderem nomear. Silêncio que um dia se quebra, de repente ou a pouco e pouco, e então as palavras emergem sobre as coisas, mostrando-se, enquanto por baixo outros silêncios começam a tomar forma.”

Annie Ernaux parece reconhecer que para que o homem possa uma vez mais exercer o privilégio da invenção e contar histórias em que a imaginação consiga realmente exercer algum fascínio através da sua margem de diferença e autonomia face à realidade, para isso é necessário primeiro que os homens resgatem a sua capacidade de se representarem a si mesmos, livres da peçonha dessa moral que tomou conta de tudo. Neste momento crítico, deve admitir-se que a estética do romance herdada do passado se tenha tornado uma forma incompetente e inábil para lidar com uma época que enfrenta como um dos seus mais sérios desafios o recuo da realidade, a perda desses marcadores epocais que nos permitem assumir certas experiências como algo de que temos em comum. Talvez Ernaux se tenha dado conta de que para que o “romance possa ainda fazer concorrência ao registo civil” (para citar a célebre divisa de Balzac, é preciso que a memória reganhe o seu poder de articulação sobre as conveniências formais em que nos absorve a arrasadora máquina burocrática do mundo contemporâneo. “Quanto maior era a nossa imersão naquilo que dizíamos ser a realidade, o trabalho, a família, maior era a sensação de irrealidade”, escreve Ernaux. E noutro momento adianta: “A profusão das coisas escondia a escassez das ideias e o desgaste das crenças.”

E, então, que se danem os personagens, os grandes elementos de composição romanesca, as descrições plangentes, que se suspendam as convenções sobre as convenções que seguram o efeito dessa psicologia enfadonha que caracteriza o espaço íntimo das vidas irreais. Numa dada época, a memória pode ter-se tornado o elemento essencial para se tentar recuperar uma ideia de realidade quanto esta entrou num processo de acelerada erosão. O problema é que não basta manter assiduamente um diário e anotar todos os acontecimentos, uma vez que, como notou Kundera, um dia, ao reler as notas, compreenderemos que não conseguem evocar uma única imagem concreta. “ E pior ainda: que a imaginação não é capaz de vir em auxílio da nossa memória e de reconstruir o esquecido. Porque o presente, o concreto do presente, enquanto fenómeno a examinar, enquanto estrutura, é para nós um planeta desconhecido; portanto não sabemos nem conservá-lo na nossa memória nem reconstruí-lo pela imaginação. Morremos sem saber o que vivemos.”

É nesta encruzilhada que a autora francesa, agora distinguida com o prémio Nobel (e é muito difícil acreditar que a Academia Sueca a escolhesse, fossem outras as condições no que respeita as tensões sociais que invadiram e se impuseram no campo cultural), assume uma intervenção exemplar e que passa por encontrar espaço para corroer certos bloqueios, certos tabus, abrir espaço para novas narrativas possam emergir. Trata-se de uma mulher nascida em 1940, em Lillebonne, uma pequena povoação na Normandia, e que cresceu no meio operário. Foi a primeira pessoa da sua família a fazer estudos superiores, e, depois, de escapar do mundo precário e da pobreza que conheceu na infância, de ter casado bem, com um homem que lhe permitiu ascender à condição burguesa, não deixou de olhar para trás. “Muitas vezes, lembra-se de cenas da sua infância, da mãe a gritar-lhe mais tarde vais cuspir-nos na cara”… Noutro momento do mesmo romance escreve: “Também sente que já nada tem a ver com o mundo do trabalho que era o da sua infância, com o pequeno comércio dos seus pais. Passou para o outro lado, mas de quê não sabe dizer, atrás de si a vida é constituída por imagens sem elos de ligação. Sente que não pertence a lugar nenhum, a não ser ao do conhecimento e da literatura.” Mais à frente, Ernaux reivindica as “recordações da sua excelência escolar e da sua inferioridade social – o que não é visível nas fotografias –, tudo o que fez desaparecer por vergonha e que mereceria agora ser reencontrado e desdobrado à luz da inteligência”. E define da forma menos enfático possível uma espécie de programa que irá levar a cabo em toda a sua obra: “À medida que a sua memória se despe da humilhação, o futuro é de novo um campo onde agir.”

Esta é assim uma obra que procura abrir brechas para que outros passem, é uma obra que avança na mesma medida em que se supera toda a humilhação, esses determinismos e relações de dominação herdados, é uma obra daquele que a meio do caminho da sua vida assume a sua crise, esse momento de trevas, e se absolve de todos os “pecados” que possa ter de cometer para se libertar da condição à qual sente que foi conduzido. “Acordadas do torpor conjugal, sentadas no chão por baixo de um cartaz onde se podia ler Uma mulher sem homens é como um peixe sem bicicleta, percorríamos as nossas vidas retrospetivamente, sentíamo-nos capazes de deixar marido e filhos, de nos desligarmos de tudo e de escrever com crueldade.” Afinal, mudar de vida, transformar o mundo, nem que seja só afetando uma arte tão estimada como é a do romance, tem um preço, e não é possível sem rebentar com muitas convenções tão preciosas. A libertação não se consegue sem uma grande dose de perda, sem se cair muitas vezes no ridículo. Mas, e sobretudo, uma obra como a de Annie Ernaux, com a sua “aparente frieza, ou mesmo insipidez”, como notou um crítico, é tão forte porque nos lembra que há alturas em que o melhor que pode fazer a arte é lembrar-nos das nossas mais íntimas aspirações, e como essas não são apenas pessoais, mas exprimem uma urgência coletiva. Face a essa consciência “as vergonhas de antigamente já não faziam sentido. A culpabilidade era ridicularizada: somos todos judaico-cretinos”.