A palavra do Presidente

Marcelo Rebelo de Sousa fala muitas vezes informalmente, mas ali não fora o caso: falara de modo formal, num púlpito, atrás de um microfone, perante uma pequena assembleia onde na primeira fila estava a ministra.

Um dia, em conversa telefónica com Fernando Lima, então assessor do Presidente Cavaco Silva, perguntei-lhe por que razão este não se pronunciava sobre uma polémica então em curso.

E ele respondeu-me: «Quando o Presidente fala, o que diz tem de ter consequências. O PR não pode correr o risco de falar – e depois não acontecer nada. E portanto tem de ter muito cuidado sobre aquilo de que fala e do que pode acontecer a seguir».

Lembrei-me disto quando, no sábado passado, na Trofa, no dia em que foram ali inaugurados um passadiço e os Paços do Concelho, ouvi estupefacto Marcelo Rebelo de Sousa dirigir-se à ministra Ana Abrunhosa nestes termos: «Como não tenho tido oportunidade de o dizer, digo-lhe hoje. Quando aceitamos funções políticas sabemos que é para o bom e para o mal. Não somos obrigados a aceitar. Sabemos que são difíceis, são árduas, que estão sujeitas a um controlo e a um escrutínio crescente – a democracia é isso – e há dias bons e dias maus, dias felizes e dias infelizes. A proporção é dois dias felizes por 10 dias infelizes».

O que iria sair daqui? – interroguei-me.

E Marcelo prosseguiu, implacável: «Este é um dia super feliz, mas há dias super infelizes. E verdadeiramente super infeliz para si será o dia em que eu descubra que a taxa de execução dos fundos europeus não é aquela que eu acho que deve ser. Nesse caso não lhe perdoo. Espero que esse dia não chegue, mas estarei atento para o caso de chegar».

Marcelo nunca tinha falado assim a um ministro.

Ana Abrunhosa, apanhada de surpresa, ficou em choque.

Não sabia o que dizer.

Metendo os pés pelas mãos, adiantou aos jornalistas que a intervenção do Presidente fora feita num «ambiente muito informal».

Ora, nem isso era verdade.

Marcelo Rebelo de Sousa fala muitas vezes informalmente, mas ali não fora o caso: falara de modo formal, num púlpito, atrás de um microfone, perante uma pequena assembleia onde na primeira fila estava a ministra.

A que se deveu o tom estranhamente incisivo do Presidente da República?

Para lá da questão concreta, ele sabia encontrar-se perante uma ministra que tem estado na berlinda.

Há meses, inesperadamente, Ana Abrunhosa deu nas vistas ao surgir a defender com grande calor Pedro Nuno Santos, no caso do anúncio da localização do novo aeroporto.

Pelo tom, a ministra parecia pôr-se ao lado de Pedro Nuno Santos contra o próprio primeiro-ministro – o que foi esquisito.

Depois, veio a polémica dos fundos comunitários atribuídos a sociedades das quais é acionista o atual marido de Ana Abrunhosa.

Esta disse que, como ministra, nada teve que ver com o assunto.

Mas a notícia que eu lera não dizia respeito à sua atuação como ministra mas sim a apoios europeus, no valor de 2 milhões de euros, a empresas de que o seu marido era sócio – numa área em que ela, como presidente da CCDR Centro, tinha sob a sua jurisdição a gestão de fundos.

Nesta história, há outras ‘ligações perigosas’.

O atual marido da ministra, António Trigueiros de Aragão, é primo direito de Maria Henriqueta Trigueiros Pinto de Mesquita, mulher de António Rebelo de Sousa, irmão de Marcelo.

Terá isto influenciado também a reação do Presidente?

Ter-se-á Marcelo querido demarcar dessa relação de parentesco, para amanhã não poder ser acusado de passividade perante eventuais falhas da ministra?

Terá querido deixar claro que já basta de confusões familiares e que ele não se deixará condicionar por essa relação?

Sei que Marcelo Rebelo de Sousa é muito sensível a estas questões.

Enfim, seja o que for que levou o Presidente a dizer o que disse, o primeiro-ministro não lhe atribuiu grande importância.

De facto, dias depois, António Costa adiantou que o Presidente da República «tem momentos de maior criatividade», deixando subentendido que este teria sido um deles.

Como quem diz: deixem-no falar, porque as suas palavras não são muitas vezes para levar a sério.

Ora, eu acho que, neste caso, a intervenção de Marcelo Rebelo de Sousa foi mesmo para levar a sério.

Pelo que disse, e pelo modo como disse, Marcelo ficou agarrado ao compromisso de agir caso a execução do PRR não for aquela que ele pensa que deve ser.

É a palavra do Presidente que está em causa – como diria Fernando Lima.

Se a execução do Plano ficar muito aquém do exigível – e neste momento está muitíssimo atrasada, situa-se nos 6% –, ou Marcelo Rebelo de Sousa cumpre a ameaça que fez à ministra ou a sua palavra fica definitivamente desvalorizada.

E Marcelo não pode correr esse risco.

A verdade é que a palavra é a única coisa que lhe resta – e já está algo depreciada pelo uso exagerado e nem sempre criterioso que dela tem feito.