Mulheres cá da terra

«O modo mais precário de se ser mais permanente De tentar tanto mais quanto menos se tente De ser pacifico e ao mesmo tempo combatente…». Ruy Belo, 1997:75 por Fernando Matos Rodrigues  Antropologo/Investigador CICS.Nova UM Como de costume lá passava a senhora enfermeira Cremilde no seu carocha branco rua d`Arca acima em direção ao Centro de…

«O modo mais precário de se ser mais permanente
De tentar tanto mais quanto menos se tente
De ser pacifico e ao mesmo tempo combatente…».

Ruy Belo, 1997:75

por Fernando Matos Rodrigues 
Antropologo/Investigador CICS.Nova UM

Como de costume lá passava a senhora enfermeira Cremilde no seu carocha branco rua d`Arca acima em direção ao Centro de Saúde. Por essa altura os mais jovens já iam a caminho da Escola Secundária de Arouca, que ficava na antiga Corredoura, mesmo no coração das novas avenidas. As manhãs de Arouca costumam ser geladas à conta da Serra da Freita que fica mesmo ali em cima, depois da Granja e do Merujal, sobranceira ao vale e ao majestoso Mosteiro de Arouca.

As filas de homens e de mulheres, vestidos de um preto carregado de uso, já vinham a chegar à rua do hospital. A doença e a velhice marcavam as manhãs frias de outono, de um outono que também nos trazia outras cores e outras epifanias. Ouviam-se o roncar das camionetas do Calçada e da Feirense, uns que acabavam de chegar e outros com pressa de partir. Homens, mulheres e estudantes cruzavam os seus destinos de uma forma quase mecânica, sem tempo para um ‘bom dia’.

Rua abaixo pela centenária rua d`Arca húmida e gelada, os bandos de rapazes e raparigas, lá iam ao encontro do seu destino. Uma rua antiga que dava abrigo ao velho Solar dos Malafaias, com o seu brasão a testemunhar que outrora gente fidalga aqui viveu. Uns passos mais à frente e deparamos com a casa do dr. Rodrigues Simões Júnior, um médico que segundo consta terá salvo a vida a muito arouquense e era alma solidária com os mais desfavorecidos. Para esses, tinha conta na farmácia para lhes aliviar as dores da doença e da miséria. E tinha como santo protetor o Senhor do Calvário.

Na minha terra eram poucas as mulheres que conduziam e tinham direito a essa singular marca da vida moderna. Mas, não era por isso que as mulheres cá da terra não comandavam casas, cafés, hortas, olivais, quintas e oficinas, padarias e bancas na rua.

Com a expansão dos serviços públicos, com destaque para os setores da saúde e da educação as mulheres começaram a ser mais preponderantes no comando destas instituições. Ocupando lugares de destaque, tornaram-se fundamentais para a prestação de serviços públicos. Fossem elas professoras e auxiliares, médicas e enfermeiras, administrativas ou ‘funcionárias’, a vida nestas instituições era quotidianamente programada e organizada por mulheres que em casa eram domésticas, mães, filhas, conselheiras e companheiras, vizinhas e solidárias, mas também beatas de muitas contas.

Pouco importa se estamos a falar de mulheres mães, enfermeiras, operárias, auxiliares, domésticas ou intelectuais. São mulheres e nessa condição humana não deixam de ser mulheres numa terra onde o patriarcalismo e o conservadorismo religioso lhes imponham recato e lhes negavam intervenção pública e política. Mulheres que tiveram infância, outras não e outras foram sempre mulheres que adiaram a infância, e, de tanto adiar foram sempre mulheres mesmo quando queriam ser crianças.

Mulheres que no seu silêncio doméstico ou na sua profissão trataram homens e mulheres, crianças e velhos numa vigorosa resistência, que uns classificaram de mansa e outros de altruísta, onde coragem e determinação foram os ingredientes para ultrapassar injustiças e violências, umas de género e outras não.

Afinal, quem são estas mulheres que deram o corpo aos homens, os peitos aos filhos, o luto aos seus mortos, que os carregaram uma vida inteira e nove meses é o tempo todo, o inicial e o homérico.

Afinal, quem são estas mulheres?

Mulheres que na dedicação ao seu trabalho lutaram contra a injustiça social e a inferioridade do género, que na sua resistência silenciosa fizeram do seu profissionalismo uma ação prática de combate contra todos os agressores e agentes de dominação, numa sociedade local onde a repressão e a dominação iam da tasca até à sacristia. Numa Vila onde as raízes da opressão eram mais profundas que a discriminação de género e de classe.

Simplesmente mulheres com nome e vida própria, reclamam aqui e agora o seu nome: Cremilde, Beactriz, Eulállia, Salomé, Rosa, Maria, Luisa, Isaura, Custódia, Lourdes e tantas outras de que não vem aqui o nome. As suas vidas fartas e longas, generosas e demasiadamente humanas, carregam todo o mundo e o nosso também. Foram dedicadas à causa pública, serviram o rico e o pobre, o doente e o moribundo, a criança e o adulto com a mesma dedicação.

1 No dia do 90 aniversário da Enfermeira Cremilde Almeida Semblano.