Inundações. Plano de drenagem não será salvação

Fortes chuvadas lançaram o pânico na zona da grande Lisboa. Carlos Moedas acena com plano que deverá estar concluído em 2025, mas Tiago Mota Saraiva garante que é necessário inverter a lógica da construção.

por Maria Moreira Rato e Sónia Peres Pinto

A zona da grande Lisboa viveu na madrugada de ontem um verdadeiro momento de terror. As fortes chuvas provocaram centenas de inundações. Um morto e várias dezenas de desalojados, a par dos danos materiais, são os resultados visíveis desta tragédia, que num período de cerca de três horas choveu em Lisboa um décimo da precipitação anual na cidade e em 24 horas 63% dos valores de todo o mês de dezembro. Carlos Moedas apontou o plano de drenagem que estará concluído em 2025 – e prevê a construção de dois túneis, cada um deles com cinco metros de diâmetro: um entre Campolide e Santa Apolónia, outro entre Chelas e Beato. As obras devem arrancar em março, implicando também obras na rede de esgoto – como solução para este problema.

Um argumento que não convence o arquiteto Tiago Mota Saraiva. Apesar de reconhecer que essa obra tem de ser feita e que anda a ser anunciada nos últimos anos pelos dois autarcas da cidade [Medina e Moedas], garante que tem de ser acompanhada pela redução do número de água a entubar. “Se continuamos em progressão geométrica a produzir mais água, ou seja, a deixar que menos água se infiltre nos solos e ter de a entubar vamos ter de continuar a construir canos, atrás de canos. Já temos 1500 quilómetros de canos de coletores pela cidade toda. É uma coisa absurda, ou seja, temos a cidade muito afunilada”, diz ao i.

E acrescenta que, enquanto essa estratégia não mudar, “é natural que se assista a episódios destes ciclicamente”, lembrando ainda que, “mesmo em 2025 se estiver pronta a tal rede que Carlos Moedas tem estado a anunciar como se tivesse sido aprovada agora, tenho ideia que se não houver uma inversão da lógica da construção vamos continuar com isto”.

Tiago Mota Saraiva lembra que é possível construir em cima de riachos e ribeiras, “tanto que há tecnologia que nos permite fazer isso, mas temos que o fazer de forma inteligente”, ao contrário do que tem sido feito até agora.”Há soluções estruturais que aguentam um edifico à vontade, mas não podemos fazer um parque de estacionamento subterrâneo. E o que tem acontecido é exatamente o contrário”. Isto é, há muito cimento e pouca terra, logo a água tem de escorrer para algum lado…

 

Contas ao prejuízo

As perdas ainda não foram contabilizadas mas, pelo menos, os comerciantes falam em prejuízos de milhares de euros. Já em relação aos particulares, os danos foram sobretudo nos automóveis.

O i sabe que em relação a possíveis indemnizações tudo depende do seguro contratado. E se no caso dos automóveis, os condutores terão de ter subscrito a cobertura de danos ou fenómenos de natureza, no caso dos comerciantes o mesmo cenário repete-se. No entanto, ao nosso jornal, um responsável do setor admite que essas coberturas nem sempre existem e a culpa deve-se ao preço.

“Os comerciantes, por exemplo, de Alcântara e de Algés deparam-se com estes problemas todos os anos, logo o risco de inundações é mais frequente e o prémio a pagar também”. E este valor pode-se agravar se o número de pessoas que subscreverem for reduzido. “Aí estamos perante um risco maior e para o comerciante estar protegido o prémio é ainda mais alto. Geralmente abdicam por acharem demasiado caro”.

É certo que ativar este tipo de seguros exige cuidados redobrados. De acordo com a Deco, “para ativar a cobertura de inundações, que cobre os danos resultantes de inundações provocadas por chuvas torrenciais, rebentamento de diques e barragens e pelo transbordamento do leito de cursos de água, a chuva deve atingir, no mínimo, 10 milímetros em 10 minutos. Estragos em dispositivos de proteção e causados pela ação do mar estão excluídos”. E lembra que pode ser necessário provar junto da seguradora, através de um documento emitido pelo Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA), que a força do vento e da chuva atingiu os mínimos exigidos.

Para já, o Presidente da República garantiu que será necessário fazer um levantamento dos danos provocados pelo mau tempo e desenhar um esquema para ajudar as pessoas a recuperar os seus bens. “Hoje as pessoas acabam por esperar da parte dos poderes públicos o que se chama responsabilidade objetiva, ou seja, mesmo que não tenham responsabilidade específica por aquilo que acontece, haver apoios que sirvam para mitigar, reduzir, aligeirar os danos sofridos”, disse Marcelo.

Oeiras que foi um dos concelhos mais fustigados já levou o presidente da câmara a garantir que vai fazer o levantamento das necessidades e admitiu que a autarquia poderá apoiar financeiramente os comerciantes. Já a Câmara de Loures vai pedir ao Governo para declarar o estado de calamidade no município. “Temos as equipas e os técnicos sociais da câmara a percorrer as zonas mais afetadas do concelho, que, em termos de habitação, foram Frielas e Santo António dos Cavaleiros”, disse o presidente da Câmara, Ricardo Leão.

Entretanto, a ministra da Presidência vai estar reunida esta manhã “com a presidente da Área Metropolitana de Lisboa e com os municípios mais afetados para avaliar o impacto das cheias e eventual necessidade de apoios”, disse em comunicado.

 

Rasto de destruição

“Cheguei lá ontem de manhã e a cancela não funcionava. O alarme estava a disparar desde as 5h. Pedimos ajuda aos bombeiros que estavam a ajudar os proprietários e funcionários de outras lojas, pelas 9h30. Abriram a cancela o suficiente para destrancar a porta de dentro e consegui ligar o quadro de eletricidade e desligar o alarme”, conta Débora Monteiro, ortoptista de uma ótica no centro de Algés.

“Depois disso, enquanto aguardávamos pela empresa de limpeza estivemos a apanhar água e lama e a deitar fora o que estava danificado. E descobrimos que as tomadas do chão queimaram todas”, lamenta. “Fomos conversar com algumas pessoas, mas quem mais parava era quem não sabia como estaria a loja e ficava chocado com a situação. Entrei no café da frente, abre por volta das 8h, e já o piso estava todo limpo e funcionava normalmente”, indica a jovem de 24 anos. “A questão é que a cave estava totalmente inundada. Depois, vim-me embora e como o IPMA indica que vai haver agravamento meteorológico acredito que hoje a loja estará igual”, observa, sendo que poderá, infelizmente, não estar errada.

 

Alerta vermelho tarde demais?

O IPMA tem estado debaixo de fogo por não ter emitido um aviso laranja ou vermelho’ mais cedo relativamente à situação meteorológica da noite passada, no entanto, o presidente do instituto admite que os modelos atualmente em uso podem não ser claros para situações de precipitação tão intensa. Críticas essas que levaram o Governo a garantir articulação permanente entre a Autoridade Nacional e o IPMA e que “os alertas são ajustados ao timing em que é possível fazer a previsão destes fenómenos que, de facto, se desenvolvem com muita rapidez”, disse ontem a secretária de Estado da Administração Interna.

Patrícia Gaspar lembrou ainda que “estes fenómenos são imprevisíveis” e que “assim que o IPMA percebeu a intensidade da precipitação emitiu avisos vermelhos e passou o alerta para laranja”.

Esta polémica levou Luís Carneiro a pedir responsabilidades e face a uma eventual ação tardia do IPMA, o ministro da Administração Interna disse apenas que “todas as forças e serviços foram acionados assim que houve conhecimento da gravidade da intempérie que se abateu sobre a área metropolitana de Lisboa”. E remeteu para o IPMA a justificação técnica.

Já Marcelo Rebelo de Sousa preferiu não comentar este possível desentendimento. “Não queria entrar nesses pormenores, até porque não conheço com rigor o que se passou, e há de haver quem vá fazer a análise do que se passou”, assegurando que todas as dimensões da Proteção Civil, das autarquias aos bombeiros e ao comando nacional, estão “muito alerta”.

Mas o cenário poderá repetir-se? “Tendo em conta a atual informação que temos ao dispor, sim, é bem possível que o cenário se volte a repetir. Mesmo que não se repita, as pessoas têm de estar preparadas”, declara Alfredo Graça, geógrafo e editor-chefe da Meteored Portugal. “O aviso laranja deve ser levado a sério. E não me admirava se, entretanto, o IPMA mudasse para vermelho. A meu ver, a decisão do aviso laranja foi, numa fase inicial, acertada, tendo em conta os critérios pelos quais o IPMA se guia para decidir a emissão de cada aviso. No entanto, creio que a decisão da mudança para aviso vermelho pecou por tardia, ou seja, já após a chuva ter causado inundações e vários estragos”.

“Ainda para mais, tendo em conta que a área geográfica da grande Lisboa, para a qual o aviso laranja fora declarado, é uma área historicamente vulnerável a inundações. Creio que este aspeto da vulnerabilidade espacial e territorial de Lisboa ao risco de inundação, isto é, o de uma geografia vulnerável a uma enorme quantidade de precipitação num curto espaço de tempo, deveria ter sido tida em conta na hora de decidir entre aviso laranja ou vermelho, e não tanto seguir os critérios existentes à risca”, nota Alfredo Graça, acreditando que os dirigentes políticos “falaram não mais do que aquilo que é necessário numa situação destas”.

O responsável diz, no entanto, que gostou “particularmente” da menção de Carlos Moedas ao Plano Geral de Drenagem de Lisboa. “Pode ser que, de uma vez por todas, este problema se resolva a partir do momento em que estas obras estiverem concluídas. E se não resolver, pelo menos que mitigue, ou atenue”, diz, sendo que Carlos Moedas definiu, no verão, o Plano Geral de Drenagem como “invisível ao olho, porque é em profundidade, mas é sem dúvida a obra mais importante para a cidade para nos prepararmos para as mudanças climáticas”. “Quanto aos discursos das autoridades, confesso que só vi e ouvi parte das declarações do presidente do IPMA, Miguel Miranda, em relação à questão dos avisos”, realça. “Tendo em conta os modelos meteorológicos de referência, para mim o modelo ECMWF era o melhor, a partir das 23:00 desta quinta, dia 8, e as 00:00 de sexta, dia 9, Portugal continental irá viver umas 9/10 horas muito chuvosas, daí que não seja de estranhar quer a ativação do aviso laranja para vários distritos (Leiria, Lisboa, Santarém, Setúbal e Faro), quer a ocorrência de mais inundações”, avisa, em declarações ao i.

“O resto do país estará coberto de avisos amarelos. No sábado, dia 10, prevê-se que a precipitação generalizada dê tréguas. O pico de chuva ocorrerá na noite de quinta para sexta, com uma madrugada e primeiras horas da manhã de sexta-feira muito chuvosas de norte a sul de Portugal. Isto deve-se à passagem de uma depressão atlântica que, além da sua natural capacidade de despejar chuva, está a ser alimentada por um rio atmosférico, procedente de Sudoeste e da zona subtropical, que serve de combustível às situações de chuva persistente nas latitudes médias”, adianta Alfredo Graça. “Frequentemente, ocorrem inundações rápidas com estes rios atmosféricos dada a quantidade de vapor de água que transportam. O vento, com rajadas pontualmente moderadas a fortes, soprará maioritariamente de Sudoeste e haverá também risco de trovoada nalgumas regiões do país”, avança. “Esta situação meteorológica poderá repetir-se entre domingo, dia 11 e terça dia 13, não se descartando que continue além desse prazo temporal”, conclui.

 

Insuficiente para barragens

Apesar da quantidade de chuva que tem caído não tem sido suficiente para encher as barragens. Um especialista contactado pelo i garantiu que o Zêzere continua ainda a estar um nível bastante abaixo da sua quota máxima. E as barragens mais pequenas do Alentejo, assim como a ribeira da Mula – uma das mais importantes da região da grande Lisboa, na serra de Sintra – continuam com níveis aquém do desejável. O mesmo cenário repete-se no Algarve com valores abaixo dos 40%. “Já a norte estará a um nível mais alto”, afirmou.

No entanto, em contrapartida esta chuva já está a ter efeitos nos terrenos para efeitos agrícolas, “praticamente em todo o território continental”.