Um crítico no Museu do Prado

Peter Schjeldahl, o crítico da New Yorker falecido em outubro, deu por si a fazer uma espécie de jogo das escondidas com As Meninas de Velázquez. por José Cabrita Saraiva

Tinha um nome quase tão impronunciável como o do vulcão islandês cuja erupção em 2010 lançou o caos no tráfego aéreo internacional. Como os seus livros nunca foram publicados em Portugal, a sua morte passou despercebida por cá, pelo que só soube dela com cerca de um mês de atraso – e mesmo assim, não fosse um mero acaso, continuaria a imaginá-lo vivo e a escrever, a vaguear pelas ruas e galerias de Nova Iorque com um velho cachecol de lã ao pescoço, como aparece nas fotografias. Falo de Peter Schjeldahl, o sensível e idiossincrático crítico de arte da New Yorker, que faleceu no passado dia 21 de outubro.
Schjeldahl, que começou como poeta, considerava-se «um miniaturista», pelo que nunca se abalançou a um livro de maior fôlego. O que temos dele são antologias de textos curtos, publicados na imprensa, normalmente a rondar as três páginas, como aquela que intitulou Let’s See – Writings on Art from The New Yorker, publicada em 2008 e que eu terei adquirido por essa altura.

Devo talvez começar por assumir que sinto uma especial simpatia pelo percurso de Schjeldahl, que abandonou a faculdade no segundo ano, abraçou o jornalismo e se tornou um crítico autodidata com um inabalável entusiasmo pela arte. Assumiu como missão transmitir esse entusiasmo através de uma linguagem rica e sugestiva, capaz de surpreender e de emocionar, para o que muito ajudava a sua veia de poeta.
A sua desconfiança em relação ao meio académico está bem expressa num comentário que fez a uma exposição de pinturas de Fra Angelico realizada em 2005. Depois de lembrar que o artista italiano vivia tão alheado do mundo que certa vez, convidado pelo Papa, se recusou a comer carne porque não tinha obtido permissão do prior (como se a do Papa não fosse suficiente), Schjeldahl comenta: «O curador principal da exposição, Laurence Kanter, e outros académicos, escrevendo aridamente no belo catálogo, esforçam-se até não poderem mais por desvalorizar o conteúdo dessas fábulas como distrações sentimentais». E, um pouco mais adiante, para que não restem dúvidas, acrescenta: «Haveria muito a dizer sobre o contributo do academismo nada-além-dos-factos para o esclarecimento mental».

A essa corrente pura e dura da história da arte – convencional, burocrática, desapaixonada e ‘desapaixonante’ – Schjeldahl contrapunha uma abordagem tão pessoal quanto envolvente. Podemos recuperar um pequeno episódio que ele nos conta logo no início de Let’s See: «A primeira vez que vi Las Meninas de Velázquez tinha apanhado um voo noturno para Madrid, bêbedo e sem dormir, primeiro, e depois fiquei com uma ressaca. Como o quarto no hotel ainda não estava pronto, dei por mim a ser a primeira pessoa na fila […] para o Museu do Prado quando abriu. Fui direito à famosa pintura». Exausto e híper-susceptivel, acabou por ficar «obcecado» com a ideia de surpreender as personagens, olhando para elas «mais depressa do que elas conseguiam olhar para mim».
Não é o tipo de linguagem que estejamos habituados a encontrar em livros deste género. Poderá haver até quem fique escandalizado. Mas reconheçamos: o verdadeiro sacrilégio não é escrever sobre arte com esta liberdade; é, pelo contrário, usar um discurso fechado e cinzento, neutro e higienizado, que transforma as maiores obras de arte numa espécie de grande bocejo.