Se excluirmos Frederico Lourenço – a quem a distinção foi atribuída na sequência do seu monumental trabalho como tradutor de Homero e da Bíblia –, desde 1999 (Manuel Alegre) que o Prémio Pessoa não ia para um poeta. Ontem, em Seteais, como mandam as regras, o júri do galardão anunciou que a escolha deste ano recaiu sobre João Luís Barreto Guimarães, cirurgião plástico natural do Porto e autor de doze livros de poesia, o primeiro dos quais, Há Violinos na Tribo, publicado em 1989, quando tinha 22 anos.
“João Luís Barreto Guimarães alia à virtude da palavra e da imaginação, uma reflexão por vezes irónica, por vezes realista, sempre duramente trabalhada, sem prejuízo do efeito estético na construção do poema”, justificou o júri do prémio, presidido por Francisco Pinto Balsemão, fundador do grupo Impresa. “Homem culto, participante activo da cultura europeia cosmopolita, a sua sensibilidade poética transita da literatura para as outras artes com uma fluidez que não recusa a tinta sentimental ou a demonstração consciente da inconsciência da condição humana”, continua o texto da ata.
Seria tentador afirmar que Barreto Guimarães é um cirurgião da palavra, que maneja o instrumento da escrita com a precisão de um bisturi. Vasco Graça Moura – outro poeta distinguido com o Prémio Pessoa – definiu a sua como “uma poesia cerebral, pensada a frio”. O facto é que, se não frieza, a sua produção assume quase sempre um caráter metódico e um certo distanciamento, que se traduz em jogos de sentido, paradoxos e apartes irónicos.
“A obra de João Luís Barreto Guimarães evoluiu não apenas no sentido do seu reconhecimento em Portugal ou no estrangeiro — mas também no do apuramento de uma ironia raríssima entre nós, e da melancolia nascida das coisas simples e quotidianas, sem ocultar uma raiz profunda que vai buscar referências à cultura europeia nas suas diversas geografias, do Mediterrâneo à Mitteleuropa, das margens do Levante à contemplação do Atlântico”, afirma o comunicado que a Quetzal, sua editora, emitiu ontem a propósito da atribuição do prémio. “A sua obra lê a poesia dos contemporâneos (que, aliás, traduz) e o edifício da história do nosso século através das suas memórias, palavras, acidentes e personagens – das mais simples às mais raras, numa peregrinação que acompanha a construção de uma gramática própria”.
“Das mais simples às mais raras” – o prosaico e o sagrado, o lírico e o comezinho coabitam sem conflito nos seus poemas, que também reportam com frequência a viagens e lugares. Não por acaso, Nómada, Mediterrâneo e Movimento são alguns dos títulos dos seus livros. Neste último, desfilam os nomes de cidades europeias (Florença, Bremen, Viena, Mostar, Veneza). O poeta revelou à RTP que já tem preparado um novo livro para publicação.
João Luís Barreto Guimarães sucede no Prémio Pessoa ao jurista Tiago Pitta e Cunha, estudioso e entusiasta dos oceanos, vencedor em 2021. O galardão tem um valor pecuniário de 60 mil euros.
Estas pedras
Ruínas
assim dispostas levam séculos a
conseguir (incêndios
e terramotos mostraram idêntico afã e
rigor na
construção) o lugar de
cada pedra cuidadosamente escolhido
pela regra
do azar (há capitéis pelo chão
numa macedónia de estilos
pousados
na própria sombra). Uma antologia de pedras é
bem matéria para
sombras (o próprio tempo se detém quando
coincide com o espaço)
seria uma
quase heresia mudar estas pedras de sítio
sem a autorização do tempo
o arquitecto do acaso.
(poema que abre o livro Movimento, ed. Quetzal, 2020)