A rede social como dinamite

A rede social é a heteronímia da pessoa comum. Como se cada um fosse e pudesse ser Pessoa com um simples clique.

por Rui Patrício

Parece que Alfred Nobel se mortificou com os usos destrutivos que deram à sua bem-intencionada e útil invenção, a dinamite. São coisas que acontecem a quem inventa. A invenção sai-lhe das mãos, vai por aí fora, saltitona, medra e viceja, ganha vidas, tomam-na em mãos e, um dia, o que era para fins de engenharia e para melhoramentos está a servir para matar a eito, pum, pum, zás. Pobre Nobel, um muito inteligente visionário que acabou surpreendido com os usos e abusos de que é capaz a velhinha e imutável natureza humana. Distrações de génio.

Outra invenção que também deu para o torto foi a rede social. Uma coisa muito bem pensada, muito útil, e que tinha e tem propósitos louváveis, grandes utilidades e vantagens, tão grandes e tão evidentes que nem é preciso enumerá-las. E que as tem, não haja dúvidas (até um desconfiado como eu as reconhece). Mas, ao mesmo tempo, também trilha maus caminhos (quer dizer, trilham nela ou com ela, que a rede social, coitada, em si mesma, é inocente, é apenas instrumento das mãos que lhe põem). Caminhos maus como a aniquilação da privacidade, o vazadouro de ódios e outras sujidades e o fio com que se tecem toda a sorte de manipulações e falsidades. Tudo isso é sabido, embora a sua natureza de óbvio que já é ululante não impeça que cada vez mais esteja a tomar conta do espaço e a comer o tempo, como se fosse uma grande armadilha que, embora mostre bem as garras, seduz de tal forma que não há resistência possível. Talvez porque a rede social seja a quintessência da ilusão, um perfeito truque de magia, um veneno de sabor tão doce, tão doce que os lábios não lhe resistem, mesmo que saibam, intuam ou ouçam que, depois de tocar no néctar, pode já não haver regresso do lado de lá do espelho.

Toda a vida é encenada, claro que é, mas nas redes sociais é-o muito mais. A rede social maquilha, filtra, esconde, finge, empola, oculta e ilumina o que quisermos, e essa possibilidade de mise-en-scène é tão irresistível no uso quanto aterradora nas consequências. A rede social dá uma outra vida, a que talvez não tenhamos. É a última e perfeita máscara, o topo da escada da evolução até a um jogo de espelhos, aquela máscara com que o humano sempre sonhou, a máscara que parece não ser, e aqueles espelhos que não mostram nada, mas parece que mostram tudo. A rede social é a heteronímia da pessoa comum. Como se cada um fosse e pudesse ser Pessoa com um simples clique.

E a rede social não precisa de verdadeira comunicação, realmente, embora pareça ser o veículo da suprema comunicação, e da mais fácil. Toda a comunicação é difícil, o ser-com-os-outros é o verdadeiro inferno, mas nas redes sociais é-o, ilusoriamente, muito menos. Porque não é comunicação a sério, é como um filme em permanente montagem; filma, corta, monta, mostra, rebobina, remonta, corta, cola, deita fora, seleciona, move a luz, cor aqui e sombra ali. Parece que se comunica muito, mas é muito pouco, porque tudo é filtrado, como num espaço e num tempo suspensos. Não há cheiro, não há som, não há pele, não há réplica nem tréplica, não há desafio inteiro. Sou dono e senhor de mim e do outro, porque o outro não existe – ou não está, embora pareça estar. A comunicação verdadeira (ou a sua esforçada e permanente tentativa) é abraço, mas abraço exige encaixe, exige dois, o abraço é complexo, é entrega, é indefesa, é susto; passo com passo, jeito com jeito (ou falta dele), acerto com acerto (ou fracasso), dor e refrigério, ferida e mezinha, defeito e compreensão, risco e superação. A rede social permite ultrapassar – ou julgar que se ultrapassa – tudo isso muito mais facilmente, alisa e amacia, protege e inebria. Facilita. E simplifica. Toda a simplicidade é tentadora, mas nas redes sociais é irresistível. Mas é uma simplicidade que só agrava o solipsismo, exatamente ao contrário do que parece. Aparentemente tanta gente, tanta coisa, mas um grande silêncio (embalado em ouropéis de ruído). Cada pessoa com todos, mas apenas verdadeiramente consigo mesma (ou nem isso, distraída). Só. Uma simplicidade explosiva, perigosa, talvez letal. Como a dinamite.