O sempiterno Sempé

Claramente Sempé fazia aquilo de que gostava. E com isso obtinha, quem sabe, a desforra das agruras da infância.

E m outubro do ano passado, o Paris Match dedicou um número fora-de-série a um artista fora-de-série: Jean-Jacques Sempé, o criador do Pequeno Nicolau, que faleceu a 11 de agosto de 2022, a seis dias de completar 90 anos.

As primeiras páginas deste número especial mostram-nos fotografias do ilustre ilustrador, desde a escola em Bordéus, onde foi um aluno problemático, ao seu ateliê com vista para Paris. Numa das legendas, lemos o seu credo: «Produzir o máximo de efeitos com o mínimo de meios».

Segue-se uma entrevista de 2020. Mas trata-se ainda apenas de um aperitivo. O prato-forte vem a seguir: o portfólio de 50 desenhos.

R evelam um artista muito completo, que tanto desenhava cidades como cenários campestres; ora a cores, ora a tinta da china; ora com traços finos, ora com aguarela, uma técnica que dominava como ninguém. Tinha a capacidade de, com meia dúzia de linhas, criar uma paisagem ou uma personagem convincente. Mas isso de pouco valeria se não conseguisse infundir tudo isso com espontaneidade, humor e sentimentos.

As representações de crianças, das suas brincadeiras e traquinices inocentes, são especialmente encantadoras. Numa delas, vemos os pequenos estudantes a correrem para andarem à pendura num autocarro, com as pastas de cabedal na mão. Outra mostra 14 miúdos apinhados (14!) num sofazinho de um lugar, todos de olhos postos num livro aberto. Na primeira, o bando irrequieto; na segunda, todos sossegadíssimos, mas igualmente expressivos.

Este dom para captar a essência da infância dá que pensar, tendo em conta que a infância do próprio Sempé foi miseravelmente infeliz.

Nascido perto de Bordéus a 17 de agosto de 1932, era filho de pai incógnito. «É muito incómodo não conhecermos o nosso verdadeiro nome, muito desagradável. Há sempre qualquer coisa que não bate certo», dizia ao Paris Match em 2020. A mãe acabaria por juntar-se com um tal Sr. Sempé, que bebia demasiado e chegava a casa num estado lastimoso.

O pequeno esteve durante algum tempo entregue a uma ama e quase morreu de maus-tratos. «Tive uma infância e uma juventude horríveis, ignóbeis, sinistras, medonhas».

Isso tinha-o marcado. Mas ninguém diria, a avaliar pelos seus desenhos luminosos, que transbordavam de boa-disposição.

C laramente, Sempé era alguém que sabia apreciar as coisas boas da vida. Trabalhava muito, mas fazia aquilo de que gostava. E com isso obtinha, quem sabe, a sua desforra das agruras da infância. Enquanto outros da sua geração, porventura excelentes alunos, tinham empregos aborrecidos das nove às cinco, ele, que deixara a escola aos 14 anos para trabalhar como moço de recados, ganhava uma fortuna com um só dos seus desenhos geniais. O meu favorito mostra um homem a passear um cão solto na praia, sem trela. Seguem lado a lado. As pegadas de um e de outro ficaram gravadas na areia seca e mostram o respetivo percurso. As do homem, um curto tracejado em linha reta, paralelo à linha da água. As do cão, numa espécie de picotado, formam um emaranhado elegante de linhas curvas que percorre todo o areal. Não é bem um desenho, é um poema. Mais concretamente, uma ode à liberdade.