Como é que a inflação afeta os que menos ganham?

Os salários mínimos vão aumentando no mundo, mas o crescimento da inflação acaba por ‘apagar’ essa subida. Estudo mostra relação entre inflação e salários e analista alerta que ‘o fenómeno de hiperinflação demora tempo até voltar aos seus níveis normais’.

Os salários mínimos continuam a subir um pouco por todo o mundo mas, atualmente, a par dos ordenados mínimos, com eles dispara também a inflação, o que traz, certamente, vários problemas à carteira de muitos. Um recente estudo da Picodi – que analisa 67 países pelo mundo – mostra que em apenas sete o salário mínimo não aumentou no início deste ano face a janeiro do ano passado. Entre eles estão Israel, Hong Kong e Nigéria.

Clique na imagem para ver melhor

No caso português, que ocupa o 39.º lugar da lista, o salário mínimo líquido é atualmente de 676 euros – 760 euros brutos –, um crescimento de 7,8% face a janeiro do ano passado. No que diz respeito aos restantes países analisados – e é preciso ter em conta que alguns valores foram convertidos para euros para uniformizar o estudo – os maiores aumentos do salário mínimo foram registados na Argentina (104,5%) e na Turquia (100%). «Nesses países, tanto a inflação como a desvalorização da moeda têm sido excecionalmente elevadas nos últimos anos», lembra a Picodi. Feitas as contas, o valor na Argentina subiu para 328 euros e na Turquia para 448 euros.

Voltando os olhos para Portugal, será suficiente o aumento de 7,8% do salário mínimo para combater a inflação? Vítor Madeira, analista da XTB, lembra ao Nascer do SOL que a inflação em 2022 chegou aos 7,8%. «Este aumento combate as perdas de poder de compra do ano anterior, contudo, vai haver poder de compra que poderá ter sido diminuído de duas vias». E explica quais são: «Uma pelo tempo todo em que não houve aumento do salário, mas os preços já estavam a aumentar (ao longo do último ano) e este ano se assumirmos que os preços irão continuar a aumentar, então haverá novamente perda de poder de compra pois o salário não é atualizado instantaneamente à medida que os preços vão subindo».

Caso este cenário aconteça, explica o analista, «então não será suficiente para que a população não sofra o impacto da inflação no seu poder de compra».

E questionado sobre se este aumento salarial não pode ser anulado pela inflação, o analista é claro: «Já foi anulado pela inflação do ano anterior, veremos como os preços se comportam este ano».

 

Quanto leva a cesta básica do ordenado mínimo?

O estudo da Picodi faz ainda uma comparação entre o preço médio de uma cesta básica de compras, tentando perceber qual é a fatia do ordenado que esse cabaz essencial corta todos os meses.

Este é composto por oito grupos de produtos: pão, leite, ovos, arroz, queijo, carne, frutas e legumes. «A lista é muito limitada, mas esses produtos nas quantidades indicadas são suficientes para satisfazer o requisito mínimo de nutrientes para um adulto médio», explicam os analistas da Picodi. Dela fazem parte: leite (10 litros), pelo valor de 7,40 euros, pão (10 pães, 500 g cada) a 11,50 euros, arroz (1,5 kg) por 1,62 euros, ovos (20) a 3,53 euros, queijo (1 quilo) por 7,68 euros, frango e carne de vaca (6 quilos) por 45,15 euros, frutas (6 quilos) a 8,32 euros e legumes (8 quilos) pelo valor de 9,62 euros.

Em Portugal, o preço de um cabaz alimentar básico no início deste ano tem um custo de 94,82 euros, 10,8% superior ao do ano passado. A cesta vale 14% do salário mínimo líquido, em comparação com os 13,6% do salário mínimo contemporâneo do ano passado. «Isto significa que os salários dos que pagaram menos aumentaram mais lentamente do que os preços dos alimentos», refere o estudo.

É então possível viver com o salário mínimo em Portugal? Possível é, mas é preciso fazer ajustes e ter em conta o estilo de vida de cada um. «Sim, agora se a qualidade de vida das pessoas é a desejada, aí depende de cada um», começa por defender Vítor Madeira, acrescentando que «cada pessoa tem os seus hábitos de consumo e é muito difícil comparar. Vejamos que depende sempre dos gastos, seu património já adquirido (como por exemplo ter habitação própria), rendimentos de outras fontes, etc.».

No estudo, percebe-se que a melhor relação dos preços básicos dos alimentos pode encontrar-se, no Reino Unido, Irlanda e Austrália – de 6,5% a 7,7%.

Nesta lista, Portugal partilha o seu 18.º lugar com a Polónia, com uma proporção de 14%, passando países como a República Checa (17%, 23º lugar), Eslováquia (18,6%, 27º lugar) e Hungria (23,9%, 37º lugar).

Mas há casos mais graves: Em países da Ásia-Pacífico como Filipinas, Índia, Indonésia, Tailândia e Vietname, os alimentos básicos custam mais de metade do rendimento mínimo. Na Nigéria, o salário mínimo não é suficiente para cobrir mesmo um cabaz tão básico de produtos (ver mapa).

Questionado sobre se Portugal pode aprender com outros países, Vítor Madeira defende que «devemos sempre ganhar inspiração com os melhores», por isso, Portugal «deve continuar a lutar para aumentar a sua produtividade», uma vez que «só assim vai conseguir produzir mais com os mesmos recursos e, por sua vez, aumentar o seu rendimento real».

Um recente estudo da Fundação Europeia para a Melhoria das Condições de Vida e do Trabalho (Eurofound) em Portugal, o salário mínimo aumentou para 877 euros por cada mês – tendo em conta que os 760 euros serão pagos 14 vezes por ano – crescendo 7,8%, o que é inferior à média europeia: 12%. Nessa altura, a inflação tinha atingido os 9,8% o que representava uma perda real (-2%) ou quase estagnação do poder de compra (-0,3%), face à inflação registada, ficando em ambos os casos abaixo da média.

A perda de poder de compra é um problema real? «Exatamente, se nós recebemos mais rendimento, mas o custo dos bens está mais caro, significa que o nosso dinheiro na verdade vale menos. Num cenário de hiperinflação como o que estamos a enfrentar é normal haver perda real de poder de compra», defende o analista da XTB.

 

Inflação desce para 8,3%

Ainda esta semana o Instituto Nacional de Estatística informou que a inflação terá caído para os 8,3% em janeiro – dados provisórios – sendo a terceira quebra mensal consecutiva. Para Vítor Madeira, por um lado, «este dado pode ser visto como um bom sinal, visto que o Banco Central está a conseguir estabilizar os preços». Mas, por outro, «é importante perceber as razões porque a inflação está a diminuir», explicando que o facto do BCE «ter escalado as taxas de juro (e irá continuar), tal ato de política monetária, leva a que empresas, famílias e estados tenham menos rendimento disponível, gerando quedas na procura agregada».

Na opinião do analista, estas quedas na procura agregada «podem levar a aumentos agressivos no desemprego, quebras de produção e aumento de pobreza». E, adicionalmente, o facto da inflação ter diminuído nestes últimos três meses, «são boas notícias, mas importa salientar que 8.3% continua a ser um número demasiado grande e que os problemas de hiperinflação permanecem na economia europeia».

Vítor Madeira explica ainda que este fenómeno de hiperinflação demora tempo até voltar para os seus níveis normais. «Se olharmos para a história, percebemos que sempre que temos um pico inflacionário desta dimensão, os preços demoram vários anos até se estabilizarem», lembrando que segundo o FMI, prevê-se que a inflação mundial esteja nos 4,3% no final de 2024. Já nos países da OCDE a previsão para final de 2023 é de 6,6%. «Estas previsões demonstram que mesmo em 2024, a probabilidade da inflação portuguesa se situar acima dos níveis pré-pandémicos é quase certa».