As mãos que fazem livros por medida

Herdeiros do saber do mestre encadernador Victor Luiz dos Santos, Fernando Pinheiro Santos e Andreia Tibério dos Santos, pai e filha, montaram em Cascais uma oficina que nos faz recuar no tempo. Aqui trabalha-se sem pressa para produzir livros que estimulam o intelecto e os sentidos.

São quatro e meia da tarde de uma sexta-feira; a oficina está mergulhada no silêncio e na penumbra. Não há material informático nem ecrãs à vista, apenas prensas, o rumor de um aquecedor a gás, guilhotinas, ferramentas artesanais, livros por todo o lado.

Poderia pensar-se que é a aproximação do fim de semana que traz esta tranquilidade, mas não. Aqui respira-se sempre uma atmosfera especial, impermeável à azáfama da era digital. E quando o anfitrião acende as luzes elétricas dos balões de papel de arroz que pairam acima das nossas cabeças, essa sensação de encantamento mantém-se. Apenas as coisas ganham contornos mais concretos, os títulos nas lombadas tornam-se legíveis e multiplicam-se os detalhes antes apenas adivinhados.

Situada numa rua pouco movimentada de Cascais, a Arte no Livro está para uma livraria como uma alfaiataria para um pronto-a-vestir: aqui é tudo feito por medida, não há dois volumes iguais.

«Não estamos vocacionados para trabalhos em série», explica Fernando Pinheiro Santos, mestre na arte da encadernação e no restauro de livros antigos. «Estamos mais vocacionados para um trabalho artesanal, tão diferenciado e criativo tanto quanto possível».

Seria tentador dizer que os livros entram velhos e saem novos. Mas não é o caso. Quando estão prontos a ser devolvidos aos seus proprietários, a idade continua lá toda, com a sua patine de respeitabilidade e de imperfeição. Simplesmente encontram-se impecavelmente limpos, sólidos e prontos a serem lidos vezes sem conta, sem que tenha de se temer pela sua integridade. «Quanto mais velho o livro estiver, melhor para mim», confessa o encadernador.

 

Agarrar o livro do princípio ao fim

Fernando Pinheiro Santos aprendeu o ofício com o seu pai, o mestre Victor Luiz dos Santos (1917-2010), a quem em 2005 a Câmara Municipal de Lisboa dedicou uma exposição. A figura do patriarca está muito presente na oficina.

«O meu pai começou a trabalhar com 11 anos. Acabou a quarta classe com uma boa nota, sabia ler bem, o que na altura era um ‘cartão-de-visita’», revela o filho. «A professora do meu pai foi falar com o meu avô para tentar que ele continuasse os estudos, mas o meu avô disse que não, que ele tinha de trabalhar para ajudar a família».

Alguns dos próprios patrões reconheciam «que ele era mal-empregado para aquele tipo de serviço», mas o rapaz foi cumprindo as diferentes funções do trabalho de encadernação, familiarizando-se com o processo do princípio ao fim. E saber ler era naturalmente uma mais-valia.

«O trabalho de encadernação tem sofrido algumas alterações desde a altura do meu avô», diz-nos Andreia Tibério dos Santos. Licenciada em Gestão, ao fim de 16 anos a trabalhar em marketing e comunicação juntou-se ao pai na oficina para seguir a sua paixão por esta arte – e para ter mais tempo para a família. «Antigamente havia a figura do encadernador, a do dourador, a do restaurador de livros. O meu avô foi se calhar das primeiras pessoas a fazer o trabalho do princípio ao fim».

Numa época em que as oficinas de encadernação floresciam e havia muito para fazer, o processo era quase uma linha de montagem. «Havia as costureiras, os aprendizes, os primeiros-oficiais, e cada pessoa tinha o seu papel», continua Andreia. «Depois o livro passava para o dourador, que era um estatuto acima. Os restauros também eram uma área específica dentro deste métier. O meu avô decidiu agarrar o livro do princípio ao fim. E a partir do momento em que a pessoa se relaciona com a obra do princípio ao fim, liga-se. Isso é uma parte bonita deste trabalho».

 

Do Bairro Alto a Carcavelos, ida e volta

Com experiência nas diferentes fases do processo, Victor Santos criou uma secção de dourar numa empresa já estabelecida. «Aquilo funcionou muito bem», refere o filho. «Depois esteve uns tempos na Torre do Tombo a trabalhar, mas eles não queriam despender muito tempo nem muito dinheiro com os trabalhos, era mais estar a encadernar jornais, revistas, e isso fugia ao trabalho que ele queria desenvolver». Continuou a fazer o que tão bem sabia, «sempre na zona do Bairro Alto – jornais, tipografias, alfarrabistas, nessa altura concentrava-se ali tudo».

Até que, já com nome feito no meio, se fixou por conta própria, com dois sócios, num primeiro andar da Rua Cecílio de Sousa. «Foi aí que comprou a prestações algumas máquinas destas», conta Fernando Pinheiro Santos, apontando para as velhas prensas mecânicas. «Só que entretanto teve a dor ciática e ficou dois anos estendido na cama. A situação foi muito complicada. Foi com poupanças, e com ouro, que na altura se empenhava com facilidade, que manteve a oficina». Pelo meio houve outra desilusão. «Tinha lá dois funcionários, pensava que estivessem a trabalhar. Eles trabalharam mas foi para eles, de maneira que teve de fechar a porta. Saímos de Lisboa, fomos para Carcavelos morar e o meu pai fez a oficina num anexo. Trabalhava nesse anexo e quando tinha os livros prontos vinha a Lisboa entregá-los».

A família acabou por regressar ao Bairro Alto, Rua da Rosa. «Como a casa era pombalina, era grande, uma parte era para oficina, a outra era para habitação. E o meu pai aí ficou até ao final dos dias».

Após a morte de Victor Santos, em 2010, foi preciso libertar o apartamento da Rua da Rosa. «Tivemos de tirar de lá as máquinas e arranjámos um espaço aqui em Cascais ao pé do tribunal. Em 2014 a Andreia e o marido viram este espaço, que era também de antiguidades, telefonou e viemos para aqui».

 

O primeiro passo é desmanchar, depois pode ir à tosquia

Para atingir os padrões mais elevados, o trabalho de encadernação exige, além de conhecimentos, dedicação, equipamentos adequados, tempo e uma boa dose de paciência. «Há uma série de requisitos que nós seguimos de acordo com o nosso mestre, o meu pai. O trabalho é todo artesanal, tirando aquela máquina que está lá em frente, o balancé. Serve para gravar as gravuras», comenta Fernando Pinheiro Santos. «Tudo o resto é manual».

O primeiro passo de qualquer trabalho de encadernação consiste em desmanchar o livro. «O livro começa por ser desmanchado para ser limpo. Alguns, mais antigos, estão cheios de bichos lá dentro. Os mais modernos são limpos para tirar as colas, algumas delas é um problema grande para as tirar», explica o encadernador.

Depois de o livro ter sido desmanchado e limpo, pode ir ou não à tosquia. Uma medida adotada quando as páginas estão mais sujas ou irregulares nas extremidades, e que passa por tirar uma fímbria milimétrica com o auxílio da cisalha, uma guilhotina de precisão.

«Depois de ele ser tosquiado, os cadernos são todos juntos e vem aqui para a prensa para ser serrotado», continua Andreia Tibério dos Santos. É com um serrote que se abrem os sulcos na lombada nos quais vai depois passar a linha que liga os cadernos entre si.

«Existem várias formas de coser, de acordo com o tamanho e com a época do livro. Depois de ser cosido volta para esta prensa, para se tratar da lombada. É aplicada uma massa artesanal que fazemos aqui, uma cola, para a lombada ficar mais rija. Deixamos secar de um dia para o outro, para depois se arredondar com um maço. A lombada tem de ficar um bocadinho mais rija para conseguirmos trabalhá-la», explica Andreia.

O arredondamento é um momento crucial para a firmeza e resistência do livro. «Tem de ficar bem feito para depois o livro abrir bem», exemplifica Fernando. Vai buscar um volume já pronto, e pega-lhe com uma só mão, como se fosse um criador a segurar um cachorro pelo cachaço. A capa e a contracapa, puxadas atrás, tocam-se; o miolo do livro fica solto, suspenso no ar. Parece-nos quase um sacrilégio pegar assim num livro antigo, parece que a qualquer momento se pode desconjuntar – mas o facto é que o livro continua inteiro.

«Tem de ser bem feito para abrir assim. Quando virem um livro encadernado façam isto e vejam se as páginas vêm todas atrás», aconselha. «Se isso acontecer é porque o encaixe da lombada não ficou bem feito», complementa a filha.

 

Vira-nervos e pinturas à portuguesa

Com a lombada rija e arredondada, segue-se o passo a que se chama ‘empastamento’. Ou seja, a colocação das capas de cartão, que depois serão revestidas de acordo com o trabalho pedido.

A pele – «gostamos de trabalhar com carneira» – compra-se ao pé, ou seja, é um animal inteiro. Como chega demasiado grossa para ser trabalhada, tem de ser desbastada, ou, na gíria, ‘chifrada’. Fernando mostra como se faz. «Esta chifra que o meu pai está a usar agora é para fazer o corte nas extremidades. A redonda serve para desbastar o interior. Chifrar a pele é crucial para ela estar maleável o suficiente para se adaptar ao formato do livro».

Andreia pega num livro. «Este já está empastado, já tem a pele, já tem o transfil, já tem o fitilho para marcar as páginas e uma aguada de massa para proteger a pele». Na bancada de trabalho há uma ferramenta que não destoaria muito num consultório de dentista de outros tempos. O nome desta ferramenta também não é de modo a tranquilizar. «Utiliza-se para vincar a pele, por isso é que se chama vira-nervos», esclarece a encadernadora. «Isto faz-se quando a pele ainda está húmida. Depois de secar completamente é que é tratada com uma aguada para proteger dos bichos e ficar um bocadinho mais uniforme».

Quando se trata de escolher o acabamento da pele, as possibilidades são quase ilimitadas. «Das duas uma: ou assumimos esta cor natural e vamos brunir, ou vamos fazer a decoração com produtos químicos que temos aqui, seja potassa, seja caparrossa. Ou então pintamos, pode-se fazer uma infinidade de coisas. Tem ali exemplos com tinta-da-china ou com papel japonês», explica Andreia.

«A cor é atribuída por nós», acrescenta o pai. «Fazemos a chamada ‘pata de gato’ e o ‘salpicado’, à portuguesa. Podemos dar uma patine ao livro dependendo da antiguidade: se for muito antigo é mais escuro, se for mais recente é um tom mais claro».

Depois de pintada, a pele fica de um dia para o outro a secar, e depois é que vai ser brunida. Já na pequena divisão à parte onde se guardam os ferros e são feitos os dourados, Andreia liga o maçarico para demonstrar como é feito o tratamento da pele. «Temos dois ferros brunidores que servem para que a pele fique completamente lisa, com os poros fechados, pronta para receber o trabalho de decoração», diz ao mesmo tempo que acaricia o trabalho.

«Às vezes as texturas que se obtêm aproximam-se muito do efeito de madeira. Adoro trabalhar a pele, fazem-se muitas experiências e se as documentarmos conseguimos quase ficar com um catálogo, embora o resultado nunca fique igual».

 

Um objeto multissensorial

O último passo deste longo processo – que envolve longos tempos de repouso (dos livros, não dos encadernadores) para consolidação da estrutura e secagem – é a colocação dos ferros. «Os ferros dependem muito da época do livro, se é do século XVII, do século XVIII, do modernismo, mais contemporâneo, menos contemporâneo», explica Fernando Pinheiro Santos. Seja mais ou menos rica, a decoração é sempre feita com folha de ouro fino de 23 quilates. «Não usamos ouro sintético».

O anfitrião vai buscar um volume encarnado para mostrar o grau de requinte a que pode chegar a decoração de uma capa. «Primeiro tem de ser tudo feito em papel». As medidas não são feitas com réguas, só com compassos, para que bata tudo certo.

Depois de feito no papel, o desenho é copiado para uma folha de papel vegetal. «Desse passa-se para a pele, onde se fazem as marcações. Depois de estar tudo identificado é que colocada a folha de ouro e começa a fazer-se a gravação».

Outro trabalho que requer perícia é o dourado por folhas, por exemplo do topo das páginas. «Tem de se secar muito bem, raspar e colocar o bório para que o ouro agarre. Usa-se uma pedra de ágata, é uma técnica mesmo muito complexa e muito poucas pessoas sabem fazê-la hoje em dia», revela Andreia.

A combinação de todos estes saberes resulta em algo que já não é apenas um livro, mas um objeto de arte. «É assim que nós o tratamos», diz a encadernadora. «É um objeto multissensorial, em que a estética desempenha um papel muito importante. Tem o objetivo de ser lido, mas também de ser visto, sentido e tocado».

Bibliófilos e bibliófagos

Com a Arte no Livro, Fernando e Andreia quiseram homenagear o pai e avô, Victor Santos, e manter vivo um certo saber artístico e oficinal hoje ameaçado de extinção. «Quando abrimos a oficina, a filosofia foi perpetuar os ensinamentos que o meu avô nos passou, a relação afetiva que tínhamos, as memórias e o sentimento que sabíamos que o meu avô nutria pelos livros», explica a filha. «O saber foi-nos transmitido a nós, o que faz sentido é que possa ser transmitido a outros. Gostamos de olhar para a oficina como um local de trabalho, como um local com história, como um museu, como um sítio onde as pessoas se podem reunir e nós temos todo o gosto em fazer uma visita guiada e falar sobre o nosso ofício».

Andreia iniciou assim um novo capítulo da sua vida profissional e Fernando encontrou uma forma produtiva e estimulante de se ocupar, depois de se ter reformado como consultor da Telecom. Tendo herdado as máquinas, as ferramentas e, sobretudo os ensinamentos do pai, retomou a atividade a que se tinha dedicado – às vezes relutantemente – na juventude.

«O meu pai faleceu em 2010, houve aquele tempo meio aparvalhado». Depois foi preciso tirar as máquinas da casa do Bairro Alto. «Tinha o tempo todo livre e dediquei-me a isto. Não é que não seja uma pessoa social, mas gosto de estar sossegado», confessa.

Aos fins-de-semana, divide o tempo entre a família, a oficina, as leituras e a escrita. «Gosto muito de escrevinhar, às vezes limito-me a copiar frases de livros. Sou curioso e a história ligada ao património é o que me entretém mais. Além do restauro de livros, uma ocupação que me isola completamente é a escrita». Aprendeu caligrafia na escola e por isso compraz-se a escrever com canetas de tinta permanente.

Mas o que mais lhe enche as medidas são os restauros. «Tem de se ter muita atenção, é um trabalho minucioso e moroso, é o que eu gosto mais, o tempo passa e esqueço o que mais existe», descreve.

Num desses trabalhos deparou-se com uma surpresa. «Quando comecei a desmanchar o livro, tinha lá um amigo dentro a trabalhar. Um bichinho».

Vendo bem, seremos assim tão diferentes? Uns rodeiam-se de livros e devoram-nos; outros alimentam-se e escolhem viver dentro deles. Bibliófilos e bibliófagos não têm de ser inimigos, e até partilham uma paixão comum pela página impressa.

Para não melindrar a filha, Fernando Pinheiro Santos não matou a pequena lagarta que encontrou no interior do livro. «Meti-a num frasco», confidencia-nos. «E até lhe pus lá um bocadinho de papel para ela comer».