Também os números têm duas faces

Se formos vasculhar um pouco mais os números, concluímos, pelos dados dos Banco de Portugal, que o endividamento global, entre administrações públicas, particulares e empresas, atingiu Eur 793,8 MM, ou seja uma subida de Eur 19,1 MM face a 2021 (!), o que realmente nada surpreende.

1. Medina teve esta semana o seu momento de fulgor ao anunciar na Assembleia da República que a dívida pública portuguesa desceu cerca de 12 pp face ao ano anterior. Não escondendo alguma euforia, legítima pela objetividade dos números, ficámos todos a saber que a dívida pública na ótica de Maastricht desceu para 113,8% do PIB e que o crescimento da economia portuguesa foi de 6,7%, com a confirmação de que as exportações portuguesas atingiram cerca de 50% do PIB.

Pelo caminho falou na subida da produtividade em cerca de 4,8% perante a incredulidade geral, sobretudo de Cotrim de Figueiredo a liderar os mais céticos, referiu a descida (embora ligeira) da inflação em 2023 e, relembrou os apoios dados às famílias de cerca de Eur 5,7 MM que representando 2,1% do PIB (Eur 6,4 MM com garantias prestadas), permitiu a Portugal ter o orgulho de ser o 4.º país da Zona Euro que mais apoios concedeu.

Embalado por notícias tão boas, ainda referiu que a dívida das famílias caiu para 63,7% do PIB e que a dívida das empresas recuou para 121,9% do PIB, dados objetivamente excelentes, mas, tal como o valor da dívida pública (relembro os 113,8% anunciados) também estes rácios beneficiaram amplamente do crescimento da economia portuguesa para regressar a valores de pré- pandemia. Posso estar equivocado, mas a realidade da dívida pública ter atingido os Eur 272,6 MM no final de 2022, cerca de Eur 3 MM superior a 2021, ficou de tal forma escondida que em nenhuma das notícias que saíram da sua intervenção surge mencionada esta factualidade.

Se formos vasculhar um pouco mais os números, concluímos, pelos dados dos Banco de Portugal, que o endividamento global, entre administrações públicas, particulares e empresas, atingiu Eur 793,8 MM, ou seja uma subida de Eur 19,1 MM face a 2021 (!), o que realmente nada surpreende. É indiscutível que a utilização das estatísticas face ao PIB, quando este cresce significativamente, camufla preocupantemente as realidades e estes números, que deveriam preocupar de sobremaneira os responsáveis nacionais, ficam convenientemente em segundo plano à espera de melhores dias.

É indiscutível que depois do desastre económico com que a pandemia nos brindou, a recuperação tinha de acontecer, com o regresso à normalidade na vida das pessoas. Deste modo, não surpreende o crescimento da economia em 2022, porque, sobretudo as empresas tiveram de ‘dar ao pedal’. Todos que andamos na rua sentimos o turismo a fervilhar, pelo que é objetivo que o PIB tenha altamente beneficiado com o aumento das exportações e ainda bem para Portugal.

Onde a questão se torna preocupante é na realidade da dívida, em valores nominais, não diminuir, numa conjuntura de aumento das taxas de juro que arrisca ser estrutural como medida de combate à inflação. Em finais de fevereiro, a Euribor a 12 meses (mais utilizada no crédito à habitação) já atinge 3,642% (o valor mais alto desde final de 2008).

Aliás, Medina sabe muito bem que não será nos próximos tempos que assistiremos a qualquer inversão desta tendência, mas depois de tantos meses a serem fustigados com ‘casos e casinhos’, o momento foi claramente de ‘aproveitar a onda’ para tecer loas aos méritos governativos, esquecendo que o mérito da recuperação económica é essencialmente proveniente das empresas que lutaram para sobreviver à pandemia e continuam a lutar para dar valor acrescentado ao país.

2. Esta semana, houve mais uma reunião entre o Conselho Nacional das Confederações Patronais (CNCP) e o Governo, representado pelo primeiro-ministro António Costa e pela ministra do Trabalho Ana Mendes Godinho, para discutir diversos temas que preocupam a classe empresarial, entre eles a ‘Agenda para o trabalho digno’. Infelizmente, as notícias que saíram desta reunião aparentam ter sido mais uma ocasião perdida, porque percecionamos, de um lado, uma classe empresarial descoroçoada com o que entende ser a falta de reconhecimento do Governo pela resiliência e pelo esforço efetuado na recuperação da Economia nacional e, do outro, um Governo pressionado socialmente a limitar-se a prometer agilizar o que já deveria estar agilizado.

As promessas ouvidas na reunião pelos representantes da CNCP de que o Governo irá acelerar a execução dos fundos comunitários e a transmissão da ideia de que afinal o Banco de Fomento está 100% operacional, claramente soa a pouco para quem tem de pagar salários, porque isto são medidas que há muito deveriam estar no terreno. À laia de consolação, ficou a promessa de clarificar rapidamente o tema dos benefícios fiscais a quem subir ordenados em, pelo menos, 5,1%, talvez até para os representantes dos patrões não sentirem que saíram de ‘mãos a abanar’…

Sobre as alterações às medidas laborais que a classe empresarial reivindicava, como a proibição de outsourcing após despedimentos coletivos, renúncia de créditos laborais, reversão de temas sociais que deveriam ser atribuições do Estado mas que o Governo tem imposto que sejam as empresas a suportar ou o fim das contribuições para o Fundo de Compensação de Trabalho (FCT), o Governo apenas admitiu rever o tema do FCT lá para abril, mas ignorou olimpicamente os restantes assuntos, como se infere das declarações da ministra após a reunião «ficou evidente o compromisso do Governo para com o país e a importância do Acordo de Rendimentos». E pronto, assunto arrumado e só faltou dizer «vão lá trabalhar porque precisamos dos impostos que as vossas atividades geram!».

Felizmente que João Vieira Lopes, na qualidade de porta-voz do CNCP, não se coibiu, à saída, de relembrar «a importância das empresas na criação de riqueza versus o papel absolutamente secundário que o Governo realmente lhes atribui», concluindo pelas consequências destas indefinições na vida das empresas e que retiram confiança nos investimentos e nas contratações. Mais claro não podia ser, porque o diálogo tem de ser fundamental dado que todos precisam de todos, mas é indiscutível que sendo as empresas que geram a riqueza nacional, têm de ser audíveis nas suas reivindicações.