Justiça A.S. e D.S.

2014 divide o tempo da justiça em antes de Sócrates (e Salgado, também, embora em menor medida) e em depois de Sócrates (e Salgado). O ‘s’ é, assim, o ‘s’ do(s) seu(s) nome(s). Já antes houvera uma fronteira, um momento que mudou as coisas, embora mais difícil de situar com exatidão e, também, menos intenso…

por Rui Patrício

2014 foi o Anno Domini da justiça portuguesa, ou melhor, da visão acerca dela ou da sua perceção pela sociedade. «Que atrevimento!» – exclamar-se-á acerca desta minha afirmação, trazendo para o profano terreno da justiça, ou da sociologia dela, a sagrada designação do ano do nascimento de Cristo, que passou, a partir de certa altura, a dividir o tempo num antes e num depois. Tende, calma, porém. Não exclameis tanto e não exclameis já. Pois, por um lado, o uso que faço é apenas metafórico e a metáfora, como deveis saber (e cultivar), é por excelência o terreno da liberdade da palavra e da imagem (com limites, é certo, mas saudavelmente poucos). E, por outro lado, o atrevimento ainda mal começou, a seguir é que ele vai engrossar. E vai engrossar para afirmar que 2014 divide o tempo da justiça em antes de Sócrates (e Salgado, também, embora em menor medida) e em depois de Sócrates (e Salgado). O ‘s’ é, assim, o ‘s’ do(s) seu(s) nome(s). Já antes houvera uma fronteira, um momento que mudou as coisas, embora mais difícil de situar com exatidão e, também, menos intenso na divisão das águas e das cores: o tempo da mediatização de alguns processos e, com eles e por eles, da mediatização da justiça. Também isso marcou um antes e um depois, mas nunca houve nada como a erupção do ‘s’ em 2014 (com manifestações de cinza e enxofre e com tremores antes, a anunciar a explosão e a torrente de lava que lá vinha). Aí tudo mudou, definitivamente, e para que nada na justiça (rectius, mais na superfície e sobretudo na visão e na perceção dela, menos no miolo e nas profundezas quentes e movediças) ficasse na mesma.

E – continuando no atrevimento metafórico – as palavras-chave da nova era são hostilidade e raiva, contrapondo-se àquela outra que, simplificando, se pode dizer que marcou o evangelho da chamada Era Comum, a que se sucedeu a Cristo – amor. A partir da emergência do ‘s’ ou dos ‘ss’ no cenário, passou a ser muito difícil discutir qualquer coisa sem que viessem à baila os processos em causa e as representações acerca deles. Não há norma, princípio, instituto, interpretação ou doutrina que se possa discutir em si e por si. Se tiver alguma relação, direta ou indireta, real ou sonhada, verdadeira ou suposta, et cetera, com os processos em causa – com os ‘ss’, afinal – imediatamente vem a hostilidade (ou pior), e tudo passa a ser medido, discutido, pesado, avaliado em função dos sentimentos que os processos e as suas personagens, em especial as principais, suscitam – e que são marcadamente negativos. É um facto, não há volta a dar, e isso é independente dos méritos ou deméritos de cada processo e, também, dos factos apurados, por apurar, alegados e supostos – o que, aliás, não é, nem poderia ser, o que está aqui, neste texto, em apreciação.

Há uma questão velha de séculos sobre, por exemplo, o momento da consumação de um crime e da contagem do prazo de prescrição? Pode haver, mas não interessa, e ainda menos interessam os seus méritos e razões, ou não. O que interessa é apenas se isso tem efeitos, mesmo que só alguns ou ténues, nos ‘ss’. Se tem, a raiva dispara, e a questão velha de séculos então está mal, está péssima, há gritos, chiliques, tiros e espadeiradas (uns motivados só pela raiva, outros por uma dose de raiva e duas de ignorância, e todos pela incapacidade de desligar as coisas do imediatismo do dia e do caso). Há uma coisa elementar como o recurso? Poderá haver, mas pouco importa se há ou não e por que é que há, se isso tiver efeito nos ‘ss’. Se tiver, está tudo mal, é cortar, é destilar ódio, é anatematizar. E não apenas para os ‘ss’, não, nem pensar, para todos, porque se a coisa serve para os ‘ss’ então tem de estar errada, logo é cortar, alterar, suprimir, mudar, varrer, higienizar.

São só dois exemplos, há dezenas, e mais haverá, que a procissão ainda está naquela parte do caminho entre o adro e o destino. E assim vamos, barulhentos e muito entretidos, afogados na hostilidade e na raiva e ébrios do consequencialismo mais bacoco e mais escorregadio, que é aquele que diz que tudo se mede pelos efeitos, mas nem sequer pelos efeitos gerais ou os que a estatística ampara (e esse já é empobrecedor q.b. e muito perigoso), mas sim os efeitos no caso concreto, ou melhor, os efeitos no ‘s’ concreto, pois é o ‘s’ concreto a medida da geral hostilidade e, portanto, a medida de todas as coisas. E isso – era importante que se percebesse – é o fim da norma jurídica, é o fim da possibilidade de discussão e de pensamento e, em última análise, é o fim da possibilidade de sistema de justiça. Coisa que, aliás, deve interessar pouco à opinião pública e sobretudo à opinião publicada dominante, e este meu texto ainda menos – a não ser talvez para que, como muita hostilidade, se pense que eu tenho alguma na manga para os processos dos ‘ss’. Ir para além disso não cabe na cabeça de ninguém, ou caberá na de poucos, mas temo que esses nem durem muito, varridos pela visão em apertado túnel gerada pelas palavras santas do nosso tempo depois de ‘s(s)’, hostilidade e raiva.