Leia com moderação

Poderão os livros ser prejudiciais? É sabido que qualquer imbecil consegue escrever um livro de 500 páginas, mas alguns dos maiores pensadores não escreveram uma linha. 

U m destes dias, ao ligar o computador, apareceu-me uma bonita fotografia de uma rua de Londres acompanhada por uma mensagem: ‘Sabia que a leitura estimula o cérebro e melhora a memória?’. A mensagem em si não era propriamente uma novidade; a novidade era aparecer assim sem pedir licença num fundo de ecrã, um pouco à semelhança daqueles apelos para moderar a velocidade ou para não usar o telemóvel enquanto se conduz que surgem nas autoestradas.

Poderiam escrever-se vários volumes com elogios do livro e da leitura. Ainda há pouco tempo me deparei com uma dessas belas frases, do escritor francês Christian Bobin, recentemente desaparecido: «Amei os livros pelo que eles eram, blocos de paz, respirações tão lentas que mal se conseguiam ouvir». Gosto também especialmente da definição que nos deixou o poeta norte-americano James Russell Lowell: «Os livros são as abelhas que transportam o pólen fecundante de uma mente para a outra».

M as, quando o elogio da leitura chega, sem pedir licença, a milhões de ecrãs dos computadores por esse mundo fora, começa a haver algo de fastidioso em tamanho consenso. E por isso, por muito que eu goste de livros, ocorreu-me que seria um exercício interessante recolher algumas citações não a favor, mas contra eles.

Para começar, é bem sabido que, enquanto qualquer imbecil pode escrever um livro de 500 páginas, alguns dos pensadores mais influentes da História não escreveram um linha. Refiro-me a Buda, ou Sidarta Gautama; a Sócrates, o filósofo grego do século V. a.C.; e, claro, a Jesus Cristo. A este propósito, vale a pena recordar a frase lapidar com que José Saramago iniciou o seu discurso de aceitação do Nobel: «O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever». Referia-se ao seu avô, Jerónimo Melrinho, um homem do campo que conhecia as árvores uma a uma.

Poderão os livros ser prejudiciais? Há quem acredite que sim. «Um samurai típico injuria o sábio literário chamando-lhe ‘rato de biblioteca’», diz-nos Inazo Nitobé em Bushido – A alma do Japão. «Outro compara a erudição a hortaliça malcheirosa que tem de ser muito cozida antes de poder ser consumida»… Como o percebemos!

N’A Cidade e as Serras, comenta Zé Fernandes a propósito de nem ele nem Jacinto saberem o nome de uma estrela que lhes surge por cima do beiral do telhado. «Não sabíamos. Eu, por causa da espessa crosta de ignorância com que saí do ventre de Coimbra, minha mãe espiritual. Ele, porque na sua Biblioteca possuía trezentos e oito tratados sobre Astronomia, e o Saber, assim acumulado, forma um monte que nunca se transpõe nem se desbasta».

Talvez o problema, como parece sugerir Eça, não sejam os livros, mas antes o excesso deles. Na realidade é esse o tema de um dos mais inesquecíveis romances de todos os tempos. «Em suma, tanto naquelas leituras se enfrascou, que as noites se lhe passava a ler desde o Sol-posto até à alvorada, e os dias, desde o amanhecer até fim da tarde. E assim, do pouco dormir e do muito ler se lhe secou o cérebro, de maneira que chegou a perder o juízo».
É isso mesmo: D. Quixote perdeu o juízo por se ‘enfrascar’ em leituras. Talvez seja caso para dizer: ‘Leia, mas com moderação’.