Boaventura Sousa Santos. Coletivo de mulheres vítimas de assédio responde a argumentos de professor

A segunda carta aberta do coletivo de mulheres vítimas de assédio, em resposta aos argumentos apresentados por Boaventura Sousa Santos na sua defesa pública, tem como objetivo primordial “prestar solidariedade” à ativista Moira Millán, na medida em que estas mulheres reconhecem “o padrão dos assédios” e acreditam no mesmo.

"Apresentamo-nos como um coletivo de mulheres que sofreu diferentes tipos de violência, resultante do padrão de abuso de poder naturalizado nas equipes de trabalho lideradas por Boaventura de Sousa Santos e percebido como inevitável pelas pessoas que ocuparam lugares de autoridade no CES [Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra] durante muitos anos. O nosso coletivo está focado em pressionar a constituição de uma comissão centrada na proteção das vítimas e não na defesa dos agressores. A necessária investigação dos casos tem que assegurar um espaço em que as vítimas possam testemunhar sem medo de retaliações", começam por recordar as alegadas vítimas que falaram com o Nascer do SOL na semana passada, agora na segunda carta aberta, salientando: "Sabemos que o poder está desigualmente distribuído e é por isso que muitas mulheres são silenciadas".

"A resposta que Boaventura de Sousa Santos fez circular em reação às acusações da ativista indígena Mapuche Moira Millan (a que a própria também já respondeu) vem ao encontro de parte das nossas preocupações. Esclarecemos, desde já, que não conhecemos e, até ao momento, nunca contactámos a ativista em questão. Levamos, no entanto, muito a sério a sua história. Se toda a crítica tem direito a resposta e toda a acusação tem direito a defesa, é preciso romper com o pacto académico de produção de verdade assente em hierarquias que atribuem ao lado mais forte o poder de definir o que é racional e o que é irracional, o que é provável e o que é improvável, o que é verdade e o que é mentira e quais são as perguntas que interessa fazer e sobretudo responder", escrevem, redigindo que "na narrativa que assume como prova de inocência, Boaventura usa uma lógica de produção de verdade que reproduz problemas estruturais da academia: o professor catedrático escolhe a quem quer responder e ao que quer responder; define os termos do debate; desclassifica a vítima e assume que a sua palavra tem mais valor".

"Na cartilha de defesa dos abusadores encontra-se o recurso a evidências da cordialidade ou até da simpatia das mulheres após os comportamentos abusivos traumáticos que relatam. Ainda que toda a troca de e-mails que alegadamente prova uma continuidade nas relações entre Moira Millá e Boaventura fosse verdadeira (o que Moira Millán desmente), isso não produz prova de inexistência de abuso. É comum as mulheres sofrerem abuso e ainda se verem na obrigação de ser bem-educadas com o agressor. Todas sabemos, porque também fomos educadas a silenciar o que sentimos para evitar o desconforto geral, seja no jantar de Natal, seja na reunião de trabalho", frisam as mulheres – representadas pela advogada Daniela Félix – no texto enviado aos órgãos de informação brasileiros e portugueses.

"Falhar essa regra, resulta em classificações bem conhecidas pelo patriarcado e pelas mulheres que o contestam: insubordinada, conflituosa, difícil, emocional, histérica, louca, desesperada, egoísta. São tantas as razões possíveis para manter a cordialidade, que só podemos dar exemplos: abusadores são manipuladores e podem fazer passar por insensibilidade e falta de empatia aquilo que foi uma rejeição do abuso; a culpa que as mulheres historicamente carregam faz com que muitas vezes questionem o que disseram, o que vestiram, como se movimentaram antes de conseguirem chamar violência ao que viveram; o poder de difamação do abusador é exponencialmente superior ao poder da vítima para denunciar; abusadores podem ser líderes de projetos e causas que as vítimas veem como mais importante do que a sua condição individual de sofrimento".

"No final da sua resposta, Boaventura Sousa Santos afirma: 'não posso aceitar que me façam acusações falsas como os factos bem demonstram', mas os factos apresentados por ele só podem ser entendidos como prova de inocência por quem não tenha qualquer ideia do que é sofrer assédio numa sociedade que soube sempre proteger melhor os agressores do que as vítimas. 'Gostaria de não ter que avançar por meios jurídicos para resolver esta questão' é o tipo de formulação que serve em tantas situações e tão bem reconhecemos: a ameaça em tom suave, condescendente e patriarcal. Moira sabe que se não desistir, a guerra vai ser dura e Boaventura espera que a ameaça seja suficiente. Habituou-se na vida a que assim fosse", deixam claro, evidenciando que "Boaventura assume que as pichações que surgiram nas paredes de Coimbra com acusações de violência sexual se referiam à agressão sobre Moira".

"Todas sabemos que não é verdade. O caso mais conhecido era o abuso sexual exercido sobre a atual deputada brasileira Isabella Gonçalves, na altura uma jovem estudante de doutoramento no CES. Boaventura passa assim uma borracha sobre esse caso, como se nunca tivesse existido e não houvesse uma denúncia real. Sabemos que existiu. Mas Boaventura está habituado a definir quais são as perguntas e os casos relevantes, assim como as interlocutoras válidas e as inválidas, porque é esse o poder que a academia atribuiu a um professor catedrático e é esse sistema de validação que tem que ser questionado".

Recorde-se que o CES decidiu mesmo abrir um inquérito no contexto da publicação de ‘As paredes falaram quando mais ninguém o fez’ na obra 'Má Conduta Sexual na Academia', da autoria das investigadoras Catarina Laranjeiro, Lieselotte Viaene e Mya Nadya.

Um dos casos diz respeito a uma investigadora brasileira – que agora se sabe que é Isabella Gonçalves – na qual Boaventura Sousa Santos terá tocado no joelho e convidado a "aprofundar a relação", tendo-a colocado de parte quando esta recusou os seus supostos avanços. O professor, em 2014, tinha mais de 70 anos e, a aluna, menos de 30. O toque não terá acontecido na universidade, mas sim em casa de Boaventura Sousa Santos, sendo que este teria acabado de aceitar orientar um trabalho da investigadora. Alegadamente, ter-lhe-ia respondido ao email com a solicitação sugerindo que se encontrassem na sua residência e a reunião, aparentemente de trabalho, começou com uma receção com bebidas alcoólicas, que a aluna recusou. "Acho que confundiu as coisas", terá dito a mulher, que ouviu falar do investigador por meio do livro ‘Ecologia de Saberes’. "Li aquilo e fiquei admirada e isso fez-me tomar a decisão de fazer o intercâmbio estudantil na altura da graduação para Portugal", contou ao jornal online Observador, explicando que a publicação a fez "querer fazer um doutoramento" no CES. 

Logo no dia seguinte, tendo-se reunindo com Boaventura Sousa Santos e com o seu ex-companheiro (também estudante de doutoramento), a investigadora levou com um balde de água gelada. "Criticou de forma muito agressiva o trabalho que vínhamos fazendo", contou a mulher ao jornal Público e tal levou mesmo a que o seu então namorado chorasse. Procurou ajuda junto da universidade, mas o coordenador do curso ter-lhe-á negado a mesma. "Infelizmente, o Boaventura é brilhante, mas tem destas coisas", terá dito.

A agora deputada terá regressado ao Brasil e terminado lá o doutoramento mas, em 2019, recebeu um email de Boaventura Sousa Santos, que ia estar em Bahia e queria estar com ela. O professor pediu desculpa e perguntou se a antiga aluna estava relacionada com os grafitis que tinham surgido em Coimbra com a mensagem ‘Todas Sabemos’, mas ao Observador a mulher garantiu que não teve nada a ver com os mesmos.

"Boaventura assume como prova de inexistência de assédio o facto de a sua casa não ter um sistema de segurança, como Moira afirma. Acontece que, em Portugal, é comum os prédios, que raramente têm porteiros, serem protegidos por uma porta comum de acesso aos moradores, que pode ser aberta por fora com recurso a um código ou uma chave. Para sair, nada disso é necessário, mas, para quem perceba alguma coisa de interculturalidade ou simplesmente já se tenha sentido insegura em lugares onde não conhece as regras, é fácil compreender como aquelas portas possam ser entendidas como sistema de segurança para quem vem de um lugar muito diferente", declaram as vítimas que criaram o coletivo, regressando ao caso de Moira Millán. "Insistimos que todas estas acusações devem ser investigadas e sabemos que os acusados têm direito a defesa, mas essa não pode assentar nas mesmas regras que fizeram calar-nos tanto tempo. Os abusadores não podem escolher as perguntas a que respondem e não têm o direito de selecionar e (des)classificar as vítimas".

"Boaventura mostrou, ao procurar defender-se, que conhece bem as regras que protegem o patriarcado e que sabe usá-las. Não nos convenceu. Enviamos daqui uma mensagem de solidariedade à Moira Millán: nós acreditamos, porque nós reconhecemos o padrão. Por fim, recorda-se que o e-mail querocontarminhahistoriaem23@gmail.com segue à disposição a todas que foram afetadas pelas práticas abusivas de Boaventura de Sousa Santos e precisam de um espaço seguro para partilhar suas histórias", concluem, sendo que, esta quinta-feira, o Público noticiou que o investigador exige “um pedido público de desculpas” à ativista argentina mapuche Moira Ivana Millán "que o acusa há anos de agressão sexual, alegadamente ocorrida em 2010", definindo as "acusações" da mesma como "falsas e caluniosas" num documento enviado àquele jornal. 

Nas reproduções de e-mails que terão sido trocados entre Boaventura e Millán, lê-se o seguinte, alegadamente enviado pela ativista: "Mando-te um grande abraço confessando que guardo com carinho o aroma das ruas de Coimbra, aquela noite quente, o nosso passeio sem pressa e a conversa cativante e estimulante que tivemos, e claro o teu bom gosto para os vinhos”. Sendo que, "imediatamente", o sociólogo terá respondido: “Fico contente por saber que gostaste da passagem por Coimbra. Tive muito gosto em receber-te em Coimbra. A tua palestra foi muito apreciada por todos. Também me senti muito desafiado pelas tuas perspetivas sobre as lutas indígenas”. Contudo, Millán nega que estas palavras tenham sido dirigidas a Sousa Santos e explica que foram enviadas a um amigo seu francês, explicitando que foi alvo de ataques informáticos por aceder ao e-mail a partir de cibercafés.