Professores envolvidos em falcatruas

As fraudes encapotadas multiplicam-se nas universidades. ‘Uns trabalham e outros beneficiam’ – é a frase que resume a situação. A intenção é trepar na carreira. A ministra Elvira Fortunato continua a publicar artigos em série.

por Felícia Cabrita e Maria Moreira Rato

Há dias foi notícia que o professor espanhol Rafael Luque foi suspenso pela Universidade de Córdova por desempenhar funções de investigador em várias instituições do ensino superior. Além disso, o referido académico publica um estudo científico a cada 37 horas!

Esta realidade podia ser um exclusivo do país vizinho: infelizmente, não é.

Em Portugal, são muitos os exemplos de professores/investigadores que, quando exercem funções governativas ou de gestão nos órgãos próprios das universidades e institutos politécnicos, veem crescer, nalguns casos exponencialmente, as suas publicações científicas.

É o caso da ministra da Ciência e Tecnologia, Elvira Fortunato, que não dá tréguas: tem um total de 857 artigos na Scopus. A sua produção em 2021 foi de 42 textos, em 2022 foi de 40, e nos primeiros quatro meses deste ano publicou seis. E, não obstante exercer funções de tutela sobre a FCT, ainda mantém o seu nome em vários projetos financiados por aquela entidade, como se pode verificar na sua página ORCID.

Importa recordar, igualmente, que, como foi noticiado, a ministra solicitou à Comissão Europeia que a bolsa de 3,5 milhões de euros, que perdeu quando ingressou no Executivo, continuasse e que o projeto e a equipa de investigação pudessem continuar a ser financiados.

Por outro lado, a secretária de Estado do Desenvolvimento Regional, Isabel Ferreira, que exerce funções desde 26 de outubro de 2019, tem 875 artigos publicados. A sua produção manteve-se, mesmo depois de começar a exercer funções governativas.

A triste realidade portuguesa está acessível em fontes abertas, nomeadamente na Scopus (base de dados de publicações indexadas a este mecanismo) e no ORCID (página de ciência criada pelos próprios). Os nossos sábios professores, quando chamados ao poder, parecem ser tocados por uma varinha de condão e começam a produzir artigos como nunca.

 

Reitores aumentam produção exponencialmente

Este fenómeno não é exclusivo daqueles que exercem funções governativas. Os professores/investigadores que ocupam lugares de direção em instituições de ensino superior também cometem estas ‘proezas’.

Coimbra e a sua histórica universidade são um exemplo paradigmático. O magnífico reitor Amilcar Falcão, que foi vice-reitor entre 2011 e 2019, e reitor desde aí até hoje, aumentou a sua produção. E o mesmo se passa com o seu vice-reitor, António Figueiredo.

Mas há mais casos.

O presidente do Instituto Politécnico de Coimbra, Jorge Conde, descobriu a sua apetência de cientista quando ascendeu àquele cargo em 2017.

Há, porém, exemplos opostos. Jónatas Machado, diretor da Faculdade de Direito daquela universidade, teve produção zero desde que assumiu o cargo.

O vice-reitor da Universidade de Aveiro, Artur Silva, no cargo desde 2018, manteve-se em grande atividade científica mesmo depois de supostamente ver reduzido o tempo que dispunha para tal. «Como podem ver através de dados que são públicos, a minha carreira estava em crescente até 2018 e a partir dessa altura houve uma diminuição e depois estabilização. No entanto, para continuar a publicar os artigos e capítulos de livros nos quais sou coautor, tenho que usar os meus tempos de descanso, fim do dia e fins de semana. Tempos esses que retiro à família e descanso. Esta situação pode ser confirmada por toda a gente que me conhece, pois sabe que durmo cerca de 4 horas por noite», declarou ao Nascer do SOL.

 

Casos que contrariam a tendência

Caso também estranho, mas noutro sentido, é o do reitor da Universidade de Aveiro, Paulo Ferreira (desde 2018 até agora), que em 2017 apresenta quatro artigos na base de dados da Scopus, deixou de produzir entre 2018 e 2021, e em 2022 surge com dois artigos.

O presidente do Instituto Politécnico do Porto entre 2018 e 2022, João Rocha, produziu tanto em funções diretivas como fora delas.

Outros exemplos a contrariar esta matemática são o do ex-ministro Manuel Heitor, que deixou de publicar no seu período de governação, o do reitor da Universidade do Minho, Rui Vieira de Castro, e o do vice-reitor da Universidade de Lisboa, João Peixoto, que não têm qualquer publicação desde que assumiram funções de chefia naquelas universidades. No Politécnico de Lisboa, o presidente Elmano Margato (2021 até hoje) também deixou de publicar assim que tomou posse.

O Nascer do SOL contactou todos os visados mas, até à hora de fecho desta edição, somente obteve resposta do gabinete de Isabel Ferreira e de Artur Silva.

 

Oferta de autoria

Esta desproporção, aparentemente inexplicável, radica, as mais das vezes, naquilo que a literatura científica designa de Gift e Guest Authors, ou seja, autores por prenda ou por convite.

O físico, professor universitário e ensaísta Carlos Fiolhais começa por esclarecer que «há, em Portugal, como em todo o mundo, fraudes académicas, cometidas tanto por alunos como por professores e investigadores». E continua: «Naturalmente que aqui, como em todo o mundo, as quebras de integridade são ocultadas por quem as comete. Não há muitos dados quantitativos sobre o tema, mas a ética devia ser objeto de maior preocupação do que é». Concretiza: «Parece-me que, entre nós, para além da ocultação, há alguma cultura de permissividade, que é reflexo de uma cultura geral da sociedade portuguesa».

Na Academia, as promoções ou a obtenção de vínculos definitivos dependem significativamente da ‘bibliometria’, ou seja, do número de publicações validadas pelos pares em revistas científicas indexadas e com alto fator de impacto (Scopus/WOS). Professores/investigadores com um número elevado de artigos publicados nestas revistas são vistos como mais competentes e mais experientes, e, por via disso, cresce a probabilidade de publicarem futuramente e do aumento do número de citações.

Assim, a cultura do ‘Publicar ou Perecer’ é a grande responsável pela prática da autoria antiética.

 

Dar a ilusão de que se ‘investiga em barda’

«Acima de tudo, escrevem-se artigos – ou, por vezes, até só abstracts de 250 palavras – que são contabilizados se estiverem indexados, dado que fazer ciência é muito mais do que juntar nomes em artigos para assim parecer que se investiga em barda», explica um professor que não se quer identificar por recear represálias profissionais, adiantando que «a maioria das vezes o único contributo que certos iluminados dão a um estudo, ou a um artigo, é o seu nome e a linha da afiliação profissional; por isso, não estranhem ver artigos publicados em revistas de grande impacto com mais de 20 autores (tipo lista de supermercado)». «É que fazer ciência e investigar à séria demora o seu tempo, requer uma entrega quase exclusiva à experiência/estudo, o que necessariamente inviabiliza as atuais redes/linhas de produção mecanizadas e corporativas de artigos», sublinha.

A prática de oferecer autoria (Gift authorship) é prevalecente na maioria das instituições e tem recrudescido nos últimos anos. ‘Autoria de prenda’ resume-se a dar a coautoria a uma pessoa que não contribuiu significativamente para o estudo. Por norma, os investigadores juniores ‘presenteiam’ os seus orientadores (professores, diretores e presidentes das instituições em que estão integrados) como forma de perspetivar o seu crescimento profissional e aumentar a probabilidade de, no futuro, obterem um vínculo não precário.

O temor reverencial funciona também como critério influenciador destas autorias de oferta. Há toda uma escada de favores que se vão mutuamente alimentando com esta prática.

O ‘júnior’ (aluno de licenciatura, mestrado ou doutoramento) necessita da aprovação do seu trabalho final ou da sua dissertação/tese; então, ‘oferece’ a coautoria do artigo a publicar a partir daquele trabalho ou daquela tese. Por seu lado, o ‘orientador’ necessita de produção, prestígio, e de cair nas boas graças dos júris para a sua avaliação de desempenho e para as suas provas de agregação. E vai daí coloca como autores as figuras mais proeminentes das suas redes de áreas do saber, que também pretendem consolidar o seu prestígio e ascender ao último patamar (professor catedrático e/ou professor coordenador principal). Como fica sempre bem agradar aos que ocupam lugares de liderança nas Instituições de ensino superior, também estes beneficiam da oferenda (Guest authors). É o ‘milagre’ da multiplicação das autorias.

 

Um trabalhou, muitos beneficiaram

Feitas as contas, um trabalhou e muitos beneficiaram.

«Acontece que os cientistas seniores têm, em geral, uma experiência que lhes permite em pouco tempo fazer aquilo que aos juniores demoraria muito tempo. Mas, obviamente, não há milagres quanto à dilatação do tempo: têm de dormir, têm de comer… Sei bem que há ‘fábricas’ montadas de fazer artigos, a maior parte deles irrelevantes, pois só servem para fazer número, justificando novos financiamentos. A mim, um artigo por semana parece-me demasiado, e mais ainda se as pessoas em causa acumulam funções de direção administrativa ou política. As melhores revistas como a Science e a Nature solicitam que explicitem a colaboração de cada autor: os autores seniores vêm normalmente no fim, salientando o trabalho dos primeiros autores, muitas vezes juniores», observa Carlos Fiolhais.

«Parece que o único caminho viável para sobreviver aos métodos existentes de avaliação de desempenho (através da excessiva valorização da quantidade de artigos publicados – bibliometria), para o aumento de produção e para o incremento do prestígio profissional, é o método CIENPOWER (O PODER NA CIÊNCIA)», diz a fonte que não se quis identificar. «Enquanto não houver uma reforma profunda nos sistemas de avaliação, de progressão e de provas públicas para aceder a outras categorias, o sistema vai-se alimentando e aumentando estas práticas fraudulentas, pérfidas e absolutamente contrárias ao ‘dever ser’ que se exige de professores e instituições de ensino superior».

 

O caso de Rafael Luque

Rafael Luque é um químico espanhol e professor da Universidade de Córdova, em Espanha, que foi suspenso por trabalhar como investigador noutras instituições – como numa universidade russa – e, surpreendentemente, não por publicar um estudo a cada 37 horas desde o início deste ano. Conhecido pelas suas pesquisas em química verde e sustentabilidade, e pelo seu trabalho em síntese orgânica usando processos mais ecológicos e eficientes, Luque, de 44 anos, figura há cinco anos na lista dos investigadores mais citados do mundo, elaborada pela empresa especializada Clarivate. Segundo o El País, «instituições em todo o mundo competem para contratar cientistas como Luque, que podem elevar centenas de posições um centro em rankings académicos internacionais, como o influente ranking  de Xangai, atraindo assim mais estudantes e mais financiamento». «Sem mim, a Universidade de Córdoba vai cair 300 posições [no ranking de Xangai]. Deram um tiro no pé», disse Luque, que atribuiu a suspensão a «pura inveja».

 

Adenda

Na edição impressa lê-se que "Carlos Rabadão, ex-presidente do Instituto Politécnico de Leiria (2018-2022), duplicou a sua produção neste período, embora entre 2010 e 2013 não tenha publicado qualquer artigo". No entanto, tal informação não corresponde à verdade, pois o professor ocupa este cargo somente desde o ano passado. Como é possível ler no site oficial do IPLeiria, "desempenhou funções de Presidente do Conselho Técnico-Científico, entre junho de 2015 e outubro de 2021, e Coordenador do Departamento de Engenharia Informática, entre novembro de 2007 e outubro de 2009, cargo que interrompeu para assumir as funções de 1º Provedor do Estudante do IPL, entre outubro de 2009 e janeiro de 2013".

"Assumi o cargo de Presidente do IPLeiria, em 22 de setembro de 2022, e desde então publiquei 4 trabalhos, em 2023, fruto de trabalhos em desenvolvimento de alunos que orientei cientificamente e que aguardavam aprovação pelas editoras. É habitual estes trabalhos demorarem entre 6 a 12 meses até serem publicados. Em anos anteriores, publiquei com a minha equipa 2 trabalhos em 2022, 9 em 2021, 3 em 2020 e 10 em 2019", explica ao Nascer do SOL.