A justiça e (o mito d’) a inteligência artificial – I

Mas há coisas em que a IA, por muito ‘inteligente’ que seja e por muito que mimetize a inteligência humana, não dará grande ajuda, que são as que se prendem com o núcleo do juízo decisório, seja no domínio estrito do pensamento, seja no domínio emocional, sendo certo que este é fundamental para qualquer decisão,…

Por Rui Patrício

Começo por ressalvar que não sei muito sobre inteligência artificial (IA), ou seja – e seguindo uma definição simples –, sobre a área da investigação que se dedica ao desenvolvimento de máquinas com capacidade de desempenhar tarefas associadas à inteligência humana, como o raciocínio, a aprendizagem, a procura, a conexão e a interação. Sei apenas um poucochinho, interesso-me e procuro ir aprendendo. Sei mais, creio, sobre justiça, embora não tanto que me permita ter certezas ou sequer receitas, perceções ou prognósticos seguros. Ouso, no entanto, escrever – vampirizando o célebre dito de Mark Twain sobre a sua própria morte – que as notícias sobre o contributo da IA, por vezes quase mágico, que se se antevê para a área da justiça são manifestamente exageradas. Sobretudo no que toca à aplicação dessa magia aos propalados grandes problemas da justiça – por exemplo, a morosidade, a incerteza, a subjetividade, a inconsistência ou, entre muitos outros (até porque o rol de doenças é tão extenso quanto deve ser num caso de uma área que está, quanto às perceções e ao discurso mainstream, pelas ruas da amargura), a falta de meios.

Pode a IA dar uma grande ajuda na realização de algumas tarefas? Pode, claro. Por exemplo, no tratamento de dados, nomeadamente os que se apresentam ou agrupam em massa, na análise de documentos, na pesquisa disto e daquilo, por exemplo de padrões jurisprudenciais, em tarefas rotineiras, etc. E terá cada vez mais campo de possibilidades, tanto maior quanto mais for desenvolvida a técnica. (Embora, digo já, não supra uma coisa do diabo, que são os detalhes, aquele lugar onde por vezes se esconde o demónio). Mas há coisas em que a IA, por muito ‘inteligente’ que seja e por muito que mimetize a inteligência humana, não dará grande ajuda, que são as que se prendem com o núcleo do juízo decisório, seja no domínio estrito do pensamento, seja no domínio emocional, sendo certo que este é fundamental para qualquer decisão, para qualquer análise, para qualquer valoração. E isso, tudo isso, é a essência da justiça, o seu miolo, e aí não vejo bem como pode a IA entrar. Entrar de modo virtuoso, bem entendido, pois de outros modos tudo é possível, claro está. Mas isso, esses modos, creio que não queremos.

Aliás, estou em crer que as máquinas não terão ‘estados mentais’, nem senso e sensibilidade, não lidam com a semântica, nem com os significados, só lidam com significantes e com símbolos, e não lidam com dimensões importantes da linguagem, incluindo a não verbal. Julgo eu, mas posso estar enganado – sobre a incapacidade de a IA ficar à porta de tudo isso, não sobre a importância disso na justiça, nesta parte creio que não estou em equívoco. Mas, se não estou, digo ainda que é, mais coisa menos coisa, como na medicina: exames sim senhor, muito importantes (e nessa parte a IA é todo um mar de possibilidades e promessas), mas depois a clínica é fundamental, continua e continuará a ser.

Aliás – outro aliás –, há até quem frise a importância da biologia ou da bioquímica para a inteligência, etc., e também não estou convencido sobre isso em matéria de máquinas. Para já não falar na ética, ou nas discutidas – porém essenciais, creio eu – categorias freudianas de id, ego e superego. E que sabe uma máquina de prevenção geral ou especial, e de compaixão, e que pode uma máquina compreender, não no sentido estritamente cognitivo, mas num sentido global-compreensivo? Claro que as máquinas podem passar o chamado teste de Turing, que consiste em o juiz manter separadamente diálogo com uma máquina e um ser humano, e se não conseguir distinguir entre uma coisa e outra podemos dizer que a máquina adquiriu um nível de inteligência humana e assim passou o teste. Mas isso levanta logo, pelo menos, dois problemas. Um, saber quem é o juiz, e quem testa se o juiz é um ser humano ou uma máquina. Quem guarda o guarda? E exige outro juiz, e assim o problema repete-se indefinidamente. Outro, definir inteligência, e saber o que aí está contido. Questões, problemas, desafios, inquietações – vários e muitos. (Continua.).