O ‘medicamento’ sagrado que virou moda, que virou vício

Quando foi descoberto, ficou conhecido pelo seu papel medicinal. Com o passar dos anos, o tabaco virou moda, graças às famosas campanhas publicitárias que se espalharam pelo mundo: o cowboy da Marlboro, o Pai Natal fumador, ou mesmo o conhecido Lucky Luke. Atualmente, é considerado um vício e as publicidades como existiam antigamente há muito que…

Sabemos que entre todas as drogas conhecidas, o tabaco é a que teve, e tem, tanto maior impacto social, como maior impacto económico na história da humanidade. O tabaco começou por desempenhar papéis sagrados e medicinais entre os antigos maias, tendo também sido usado por grupos indígenas americanos. Com o passar do tempo, a sua utilização foi-se transformando, bem como se foram revelando os efeitos nefastos da planta. Agora, como é público, o legislador em Portugal quer obrigar os fumadores a alterarem os seus comportamentos. Mas de que forma o tabaco foi usado como medicamento? De que maneira as campanhas publicitárias ajudaram no sucesso do produto e como foram desaparecendo?

Escreve uma das maiores empresas de tabaco do Brasil – a BAT Brasil – que o uso do tabaco está presente na história da sociedade pelo menos desde o século XV, tendo sido, ao longo dos tempos, consumido de diferentes formas. “Os textos históricos dizem-nos que o tabaco é uma planta originária dos Andes bolivianos, onde já era utilizado por tribos indígenas”, afirma a empresa no seu site oficial. Nessa altura, o tabaco tinha “caráter sagrado” e era utilizado em rituais ou para fins medicinais. Os indígenas acreditavam que o fumo tinha poderes mágicos e terapêuticos, além de dar ao líder espiritual da tribo o poder de adivinhar o futuro. O tabaco podia ser comido, bebido, mascado ou fumado.

Acredita-se que os europeus tiveram o primeiro contacto com a planta em 1492, quando Cristóvão Colombo chegou à América. Segundo historiadores, foi em novembro desse ano que os europeus a conheceram, em parte devido à crença de que “tinha poderes curativos”. Mas foram necessárias quase quatro décadas para que a planta chegasse mesmo à Europa.

Segundo a associação Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD), foi tal a aceitação e a rapidez da divulgação que a Coroa Espanhola se apropriou do monopólio do seu comércio. Mais tarde, os franceses e os ingleses juntaram-se aos espanhóis, contribuindo para a expansão desta substância, o que originou “fortes repressões por muitas autoridades”. A título de exemplo, refira-se que Fedorovich dava ordens de tortura a qualquer consumidor até que este confessasse quem tinha sido o seu fornecedor, para depois mandar cortar o nariz a ambos. Também o sultão Murad IV castigava com decapitação, desmembramento ou mutilação quem encontrasse a fumar.

A partir do século XVIII, o levantamento das proibições permitiu um crescimento gradual do consumo de tabaco. Com a revolução industrial e a mudança significativa na rotina de trabalho com o avanço do capitalismo, a planta passou a ser usada com outras finalidades. O consumo era principalmente feito por aspiração nasal, apresentando-se o produto em forma de pó fino ou resíduos.  O tabaco era também enrolado. O consumo na forma de cigarro ganhou impulso durante as grandes guerras. Na época, acreditava-se que este poderia ser usado no combate ao stresse e à ansiedade.

Em 2021, novas evidências publicadas na revista científica Nature Human Behavior, sugeriram que já se consumia tabaco há, pelo menos, 12 mil anos.

Cientistas do Grupo de Pesquisa Antropológica do Velho Oeste, nos EUA encontraram quatro sementes de tabaco carbonizadas numa antiga lareira no Grande Lago Salgado, no estado de Utah.  Além dos restos de planta, também havia no local mais de 2 mil fragmentos de ossos de pato e madeira de salgueiro (que parece ter servido de lenha), artefactos de pedra e pontas de lança. Os investigadores chegaram à idade do tabaco a partir da datação da madeira, que tinha cerca de 12,3 mil anos. A hipótese é que os caçadores nativos de lá consumiram o tabaco enquanto cozinhavam ou fabricavam as suas ferramentas. As folhas podem ter sido mastigadas ou sugadas; posteriormente, as sementes foram descartadas ou cuspidas na lareira.

 

O tabaco na publicidade

“Fumar faz mal à saúde, deve ser evitado e não promovido. Esta é uma ‘verdade’ comummente aceite nos dias de hoje, mas nem sempre foi assim”, começa por explicar o especialista em marketing e publicidade Georg Dutschke.

Para este professor, num passado relativamente recente, fumar era entendido como um “ato social” que mostrava “modernidade” e “independência”: “Inicialmente muito focado na masculinidade, mas depois, também, no conceito de mulher independente e moderna”. Era normal os jovens adolescentes fumarem à escondidas dos pais para se sentirem homens e independentes. “Os pais, embora não de acordo, consideravam estes momentos como parte do crescimento e, num equilíbrio difícil entre castigar e permitir, tentavam fazer o seu melhor”, continuou.

O ato era  então promovido através de campanhas de comunicação que envolviam figuras públicas e estavam associadas a grandes eventos. “Algumas campanhas são inesquecíveis”, lembrou o especialista, referindo-se, por exemplo, ao cowboy da Marlboro. “Remetia para o homem duro, capaz de enfrentar os momentos mais difíceis sempre com tranquilidade e confiança”, interpretou.

Também havia o boneco Joe Camel, “tão ou mais famoso que personagens de banda desenhada como o Mickey”. “Curiosamente, nos anos 70/80 existia uma banda de música com o mesmo nome que, indiretamente, contribuiu para o sucesso da marca de cigarros. Grandes tardes os jovens passaram a ouvir e fumar Camel”, afirmou.

Sagres era também uma marca de cigarros muito associada ao desporto que patrocinava o programa de televisão Mundo Desportivo. “Com adeptos a fumarem cigarros enquanto assistiam, entusiasmados, a um jogo de futebol”, contou. “Os cigarros Benfica eram promovidos através de um anúncio de televisão onde se mostrava que os jogadores comiam os melhores alimentos e fumavam os melhores cigarros”, acrescentou.

Não sendo publicidade, é curioso relembrar também o Lucky Luke, uma das maiores figuras na banda desenhada, “sempre com o seu cigarro na boca”.

Nos EUA, entre as décadas de 20 e 50, as campanhas alusivas ao tabaco chegavam a ser mais que “politicamente incorretas”:  “Garganta Sensível? Fume Kool”, “Médicos fumam Camel mais do que qualquer outro cigarro” e “20.679 médicos dizem que Lucky Strike não irrita a garganta” são alguns dos exemplos estampados nas peças publicitárias da época. Haviam também, à época, peças que utilizavam artistas de grande renome como Frank Sinatra, John Wayne, Lucille Ball e Marlene Dietrich. Entre as mais excêntricas, o Pai Natal fuma enquanto entrega presentes e um bebé dá um conselho para a mãe mudar a marca de cigarros.

Em Portugal, havia também anúncios nos jornais. Na edição do dia 25 de Abril de 1974, A Capital, por exemplo, publicitava os cigarros Plaza Internacional. “Para quem conhece o mundo e o sabor das melhores coisas do mundo”, lê-se no anúncio. 

Quando os anúncios em televisão foram proibidos, segundo Georg Dutschke, as marcas de tabaco procuraram associar-se a grandes eventos desportivos que lhes dessem visibilidade. Um dos melhores exemplos foi a Fórmula 1 e a associação entre a Marlboro e a McLaren, com os pilotos Alain Prost e Ayrton Senna.

Atualmente, o conceito de fumar “mudou”: “Hoje é entendido como um vício, a comunicação é proibida, as marcas têm de ser criativas e procurar alternativas para comunicar”. Entre outras, podem noticiar inovações, utilizar a embalagem e o ponto de venda. «Um bom exemplo é o lançamento do tabaco aquecido, uma inovação que permitiu visibilidade nos meios de massa e suportar o lançamento deste produto”, explicou. “A embalagem é um excelente meio de comunicação, onde é possível comunicar as características diferenciadoras que a marca tem para oferecer. A visibilidade da marca no ponto de venda contribui para a venda e, para tal, o espaço (mancha) na prateleira deve ser o maior possível”, acrescentou. “Nos últimos 60 anos o conceito de fumar e a possibilidade de comunicar marcas de tabaco mudou radicalmente. De um conceito valorizado socialmente e comunicado em meios de massa para um conceito reprovado socialmente e com reduzidas possibilidades de comunicação. Um verdadeiro desafio para quem gere estas marcas!”, reforçou Georg Dutschke.