Dias após o Ministério da Defesa russo ter afirmado que a contraofensiva ucraniana tinha começado na região de Donetsk, a leste da região de Zaporizhzhia, os relatos que chegam daquela região no sul da Ucrânia dão conta de uma intensificação dos ataques por parte das forças ucranianas durante a noite, o que pode confirmar que a operação há muito esperada está a dar os primeiros passos. Este é, no entanto, um momento de enorme incerteza não apenas no que toca ao balanço de forças no plano militar, mas, sobretudo devido às fortes inundações na sequência de um ataque que provocou a destruição da barragem de Nova Kakhovka, deixando dezenas de localidades da região de Kherson submersas. Ocorrido na madrugada de terça-feira, o ataque levou a que uma torrente de água de um reservatório a montante descesse o rio Dnieper, inundando grande parte da cidade de Kherson, controlada pela Ucrânia, e dezenas de povoações de ambos os lados do rio, uma zona de guerra ativa que atravessa o território controlado pela Rússia e pela Ucrânia.
A adensar a situação trágica que vivem as populações, estimando-se que mais de 42 mil pessoas possam vir a sofrer impactos diretos, com a península da Crimeia de futuro a ficar numa situação de particular risco no que toca ao acesso a água potável, há ainda que ter em conta um significativo impacto ambiental, sendo que pelo menos 150 toneladas de petróleo foram derramadas na água e podem passar anos até que o ecossistema recupere. Entretanto, numa altura em que tanto a Rússia como a Ucrânia trocam acusações sobre quem terá sido o responsável por este ataque, o Presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, sugeriu uma investigação internacional independente para apurar as causas da destruição da infraestrutura.
Mais de 5 metros de altura
Nas próximas semanas vai ser impossível atravessar o Dnieper. Ora, este é rio que traça a linha da frente na guerra, separando as tropas da Ucrânia e da Rússia, esperando-se que a contraofensiva viesse a obrigar a uma travessia. Tratando-se de um rio de uma largura considerável, que chegava a um quilómetro na zona da foz, calcula-se que agora possa ter atingido o dobro ou o triplo da dimensão. De resto, aquela era já uma zona pantanosa, e é garantido que mesmo quando a água da barragem se escoar, o terreno ficará ainda mais intransitável.
Entretanto, Volodymyr Zelensky visitou ontem a região de Kherson, atingida pelas cheias, onde os esforços de salvamento prosseguem, tendo quase 2000 pessoas sido resgatadas das zonas afetadas. Na quarta-feira, Zelensky havia já feito um apelo a «uma resposta global clara e rápida» às inundações e criticou as agências internacionais pela sua incapacidade de dar resposta à crise. «Cada morte ali é uma acusação ao mosaico internacional existente, às organizações internacionais que perderam o hábito de salvar vidas», disse Zelensky no Telegram.
Na manhã de quinta-feira, o nível médio de inundação na região de Kherson era de mais de cinco metros de altura, segundo as autoridades regionais. Da área que ficou agora inundada, 32% situa-se na margem ocidental controlada pelos ucranianos e 68% na margem oriental controlada pelos russos, disse Oleksandr Prokudin, chefe da administração militar regional da Ucrânia em Kherson.
Entretanto as forças russas na região foram acusadas de impedir os esforços de evacuação numa localidade perto de Kherson. A povoação de Oleshky está no perímetro mais afectado pelas cheias no território controlado pela Rússia, com vários vídeos e fotografias do local a mostrar os danos provocados pelas inundações e a situação aflitiva em que se encontram vários residentes que aguardam os serviços de resgate estando retidos nos telhados das suas casas. Mas de acordo com relatos das organizações humanitárias que ainda estão a trabalhar no terreno, as forças russas têm impedido os voluntários de chegar às pessoas em Oleshky, com postos de controlo que isolaram a povoação. A Helping to Leave, uma organização que presta ajuda e serviços aos ucranianos que tentam escapar à devastação provocada pela guerra, disse que os seus voluntários esbarraram nos bloqueios russos. «Não estão a permitir a entrada de voluntários em barcos», disse um representante do grupo ao diário britânico The Guardian. «Os serviços de emergência [russos] estão a proceder a alguma evacuação, mas é muito seletiva e não é suficiente».
Em resposta às denúncias de Zelensky, o Comité Internacional da Cruz Vermelha afirmou no Twitter, na quarta-feira, que as suas equipas na Ucrânia estavam «a trabalhar sem parar» para ajudar e evacuar as pessoas afetadas pelas inundações e a avaliar o que poderia ser feito para intensificar a resposta humanitária. Enquanto isso, eram os próprios residentes que expressavam incredulidade diante do intenso bombardeamento a que estavam a ser sujeitas as localidades no território controlado pelos ucranianos. Prokudin avançou com números, afirmando que se tinham registado 353 disparos de morteiros, artilharia, sistemas de foguetes, drones, tanques e aviões russos contra a região na terça-feira. Durante a visita de Zelensky,
Na quinta-feira, as autoridades ucranianas afirmaram que além dos milhares de pessoas resgatadas da zona de inundação de Kherson, entre elas mais de 100 crianças, foram criados nove pontos de evacuação. Contudo, o Serviço de Emergência do Estado também alertou para o perigo de minas e munições não detonadas serem deslocadas pelas águas das cheias.
Silêncio sobre ofensiva
Já do lado do território ocupado pelas forças russas, os serviços de socorro terão resgatado cerca de 4500 pessoas até ontem, segundo afirmou a agência de notícias estatal russa Tass no Telegram, citando funcionários nomeados pelo Kremlin na região. A mesma agência, informou ainda que as forças de Moscovo tinham repelido um ataque ucraniano perto de Novodarivka, na região de Zaporizhzhia. Também os serviços de informação norte-americanos havia confirmado na segunda-feira que a escalada de fogo de artilharia e lançamentos de mísseis de posições militares ucranianas ao longo de partes da linha de frente no leste sugeriam que a contraofensiva havia começado.
De Kiev não houve, até ao momento, qualquer declaração a respeito destas operações que estão a ser planeadas há meses, nem houve comentários por parte das autoridades regionais ucranianas, que afirmaram que se manterão em silêncio sobre os pormenores da contraofensiva por razões de sigilo operacional.
A Ucrânia passou os últimos meses a preparar um assalto com vista a reconquistar território à Rússia, contando com o apoio de todo um dispositivo de sofisticadas armas e munições que lhe foram entregues pelos aliados ocidentais. Este arsenal que representa um orçamento de milhares de milhões de euros inclui tanques Leopard 2 de fabrico alemão e veículos de combate de infantaria Bradley de fabrico norte-americano que foram expedidos à pressa para a Ucrânia para serem utilizados na contraofensiva. As tropas ucranianas estiveram envolvidas num treino intensivo nas últimas semanas, com o Reino Unido, os EUA e outros membros da NATO a prestar auxílio e conduzir o treino de nove das 12 brigadas recém-formadas e equipadas que se espera que venham a participar nos combates, juntamente com outras unidades ucranianas. Mas os efeitos devastadores causados pelas inundações depois da destruição da barragem no rio Dnieper irão certamente levar a um revés de quaisquer que fossem os planos de Kiev para a sua contraofensiva. Além das mudanças no caudal do rio, um porta-voz das Forças Armadas da Ucrânia deixou claro que, de momento, a prioridade é a assistência à população afetada. E se a travessia do rio ficou agora seriamente dificultada, enquanto prosseguirem os esforços de resgate é muito improvável que se efetuem manobras militares naquela zona. O problema é que, do ponto de vista estratégico, isto também permite à Rússia reforçar a frente Leste com os militares que agora estão a sul do Dnieper. E Kiev vê-se assim pressionada de todos os lados, e com o tempo a correr contra si, uma vez que se o apoio ocidental tem sido constante e decisivo até à data, a longo prazo e sem progressos definitivos nos próximos meses este pode ser posto em causa. O orçamento norte-americano para assistência militar, por exemplo, deverá esgotar-se por volta de setembro, e se até lá o exército ucraniano não conseguir atravessar as zonas que os russos encheram de minas, as armadilhas para tanques e as linhas de trincheiras do invasor, apesar da ajuda, o apoio do Ocidente ao armamento das forças de Kiev poderá diminuir, e a partir daí Kiev acabará por se ver pressionada pelos aliados a encetar negociações com vista a pôr um termo ao conflito, cedendo boa parte do território que permanece sob domínio russo.