Se a lenda o imortalizou não é menos certo que dele fez o que quis, e tantos escritores de pouco talento se valeram do seu prestígio e algum lucro tiraram, atribuindo-lhe ou fazendo dele o protagonista de todo um anedotário popular poucas vezes inspirado e tantas grosseiro. As gerações sucediam-se e a biografia de Bocage foi ficando soterrada por fábulas de um género soez, por historietas sem graça e facécias de almanaque barato. Mas se «em torno do seu nome chegou a formar-se uma atmosfera de depravação e de escândalo», levando a que os versos bocagianos a dada altura fossem sinónimo de uma «literatura de sal grosso e bafio nauseante, florilégio de lama», como recordou Carlos Jaca num excelente e longo artigo publicado em sucessivas edições do Diário do Minho, em 2005, talvez a tudo isso tenha sobrevivido o talento que o fazia destacar-se e um gosto pela transgressão. E talvez o exagero na representação do poeta revele uma homenagem do povo, que o puxou para si, o reclamou construindo à sua imagem um herói e um porta-voz, alguém que exprimia um inconformismo, um desejo de liberdade resvalando na libertinagem, e o desafio a uma ordem e moral sempre repressivas.
A um canto ficaram os seus versos, exigentes, vibrantes, em composições impecáveis que abarcam todos os géneros poéticos; isso e as inspiradas traduções que acompanhou de longas notas justificando as suas opções e que dão testemunho não só da sua inspiração mas dos seus imensos cuidados – a um tal ponto que se diz que valorizava o próprio original. Porque Bocage era senhor de uma erudição que abrangia os clássicos, as mitologias latina e grega, dominando o Francês e o Latim. Tudo isto continuou a ser motivo de espanto entre os intelectuais, mas a reputação desenhava o seu vulto entre uns fumos nalgum fim de rua lisboeta, cambaleando, o estroina do Bocage a sair e entrar dos botequins, todos os lugares mal afamados, esse «repentista consumado de metro fácil e rima facílima».
Dois séculos e meio nos separam da Lisboa que se rendeu ao impertinente génio deste poeta, e como Daniel Pires disse ao Sol, é necessário ter em conta que a poesia de maior sucesso não tinha necessariamente muitos leitores, mas encontrava o seu público indo ao seu encontro. O maior especialista e principal divulgador da obra do poeta, presidente e cofundador do Centro de Estudos Bocageanos (1999), lembra que a Lisboa setecentista conhecia os seus poetas de os ouvir, mais do que de os ler. A poesia era então uma arte gémea do teatro, e para lá do divertimento, o seu era um humor chistoso, que convidava os mais ousados a dançar na fronteira do ultraje. Foi assim que Bocage, atento aos ares mais respiráveis que chegavam de França, país que tinha tido a sua revolução, adoptou os seus valores, e por várias vezes se viu encarcerado pelas críticas ao chamado ‘antigo regime’ de então.
Por esta razão, Daniel Pires tem defendido que Bocage merece ser conhecido «pela sua sátira, pela sua poesia de intervenção social, pelo seu trabalho como tradutor e dramaturgo e ainda pelo facto de ter sido um paradigma cívico que lutou pela liberdade».
Manuel Maria de Barbosa l’Hedois du Bocage, de seu nome completo, foi o segundo de seis filhos do juíz José Luís Soares de Barbosa e de D. Mariana Joaquina Xavier L’Hedois Lustoff du Bocage – cujo pai era o Almirante francês Gil Hedois du Bocage, que chegara a Lisboa em 1704, para reorganizar a Marinha de Guerra Portuguesa. Nasceu em Setúbal a 15 de Setembro de 1765 e faleceu, com apenas 40 anos, em 1805, no dia 21 de Dezembro. A sua particular sensibilidade para brincar com o mundo em letras revelou-se precocemente, ainda com oito anos, mas tudo indica que não demoraria a ver a infância desfeita por sucessivos abalos. O pai foi preso no Limoeiro quando tinha apenas seis anos, e só seis anos depois, em 1777, voltou à liberdade. Entretanto, tinha ele 10 anos e a mãe morreu.
Com 16 anos, quis fugir de casa ou foi mobilizado – diz-se que terá sofrido de um amor dos que nessa idade fazem a diferença entre o céu e o inferno, procurando desamarrar-se dele.Ter-se-á então oferecido como voluntário em Setembro de 1781, permanecendo no regimento de Setúbal até setembro de 1783, altura em que foi admitido na Escola da Marinha Real, partindo para a capital. E chegado aí, logo se envolve com a vida intelectual e boémia. É então que o seu talento ganha ecos pelas ruas de Lisboa e a sua fama enquanto versejador começa a nascer.
Um poeta que virá a cruzar a fronteira do neo-classicismo dando os primeiros passos no romantismo, quando a literatura se abre à individualidade e à renovação. Nos primeiros anos Bocage é sobretudo um admirador, tem em Camões o seu grande modelo, e de resto segue os valores literários da época, mostra já um domínio do ritmo, o instinto para casar rimas menos óbvias, mas falta-lhe atingir a tensão ideal e o radical equilíbrio que farão dele um dos mais originais poetas da nossa língua. Qualidades que levarão Olavo Bilac, expoente do movimento parnasiano brasileiro, a escrever possivelmente o mais exultante elogio à sua obra: «Em Portugal, a arte de fazer versos chegou ao apogeu com Bocage e depois dele decaiu. Da sua geração, e das que a precederam, foi ele o máximo cinzelador da métrica. (…) Depois dele, Portugal teve talvez poetas mais fortes, de surto mais alto, de mais fecunda imaginação. Mas nenhum o excedeu nem o igualou no brilho da expressão.»
Um soneto para que se lhe tome o pulso:
«Em sórdida masmorra aferrolhado,
De cadeias aspérrimas cingido,
Por ferozes contrários perseguido,
Por línguas impostoras criminado;
Os membros quase nus, o aspecto honrado
Por vil boca e vil mão, roto e cuspido,
Sem um só mortal compadecido
De seu funesto, rigoroso estado;
O penetrante, o bárbaro instrumento
De atroz, violenta, inevitável Morte
Olhando já na mão do algoz cruento;
Inda assim não maldiz a iníqua Sorte,
Inda assim tem prazer, sossego, alento
O Sábio verdadeiro, o Justo, o Forte.»
A fama de rabo de saias, de libertino, vem ainda dos versos cheios de intenção sedutora, menos maturados, quando a sua poesia sugeria um coração que era um harém, com constantes referências a Marílias, Ritálias, Márcias, Gertrúrias e outras. Mas todas estas paixões não o ancoraram na capital, e com 20 anos embarcou como oficial da marinha para o Rio de Janeiro, cidade que o encantou e, num esforço de ali ficar indefinidamente, lembrou-se de dedicar ao vice-rei algumas canções não se poupando em elogios. Aparentemente, aquele seria avesso a bajulações, e desagradado com algumas rimas de baixo calão, fê-lo prosseguir para a Índia. É assim que Bocage, depois de fazer escala na Ilha de Moçambique, chega a Goa, cidade que vem a achar decadente, chama-lhe esta «república de loucos», causando-lhe tristeza ver a Lisboa do Oriente dar testemunho de um império falido, consumido pela corrupção.
Compensou-se hasteando de novo a bandeira sexual, mergulhando de cabeça na boémia dali, o que lhe trouxe os primeiros problemas de saúde. Em Pangim, frequentou de novo estudos regulares de oficial da marinha. Foi depois colocado em Damão, mas desertou em 1789, embarcando para Macau. As viagens pouco contribuíram para a sua obra, tudo o perde e é só em 1790, com 25 anos, depois de ter conseguido ajuda para regressar a Lisboa, que um poderoso golpe o faz retomar a arte como tábua de salvação. A Gertrúria que exaltava em tantos dos seus versos, e que era na verdade Gertrudes Homem de Noronha – filha do governador da Torre de Outão em Setúbal –, a grande paixão que o fez deixar o país, casara-se com o seu irmão mais velho, Gil Bocage. O sofrimento que isto lhe causou fez com que tivesse a vontade de perder a pele, e assim foi mais longe que nunca nas suas viagens ao fim da noite. É desses dias que lhe vem a fama de obsceno, mas é também nesse período que toma contacto com os ideais da Revolução Francesa, lê os iluministas, adere ao espírito do liberalismo político e cultural, e a sua poesia torna-se um mirante para esta visão.
Ainda nesse ano é convidado e adere à Academia das Belas Letras ou Nova Arcádia, cujos encontros são realizados nos salões da casa do conde Pombeiro e nos quais adoptou o pseudónimo Elmano Sadino. Mas não demorou muito para que o seu temperamento chocasse com o das alminhas notáveis e contentes do seu tempo, de modo que as «quartas-feiras de Lereno» se tornaram o alvo da sua sátira, atacando o seu presidente e vários outros dos seus pares. Trava-se então uma autêntica guerra verbal e a inventividade trepa a árvore da obscenidade para colher os insultos mais chocantes.
Em 1971, Bocage publica o primeiro tomo das Rimas, firmando a sua reputação poética, onde a irreverência do seu temperamento desafiava abertamente a ordem e a moral de então. Apesar da protecção de alguns amigos, como Filinto Elísio e a marquesa de Alorna, o poeta é expulso da Nova Arcádia e, três anos mais tarde, em 1797, é preso e processado pelas posições antimonárquicas e anticatólicas, acusado por conspirar contra a segurança do Estado e pela autoria de «papéis ímpios, sediciosos e críticos». Primeiramente recolhido à cadeia do Limoeiro, é, depois, por influência de amigos e mediante muitas súplicas e retratações, transferido para o mosteiro de São Bento e deste para o mosteiro dos Oratorianos.
Os anos que passa enclausurado são aqueles que vai dedicar à tradução dos poetas franceses e latinos. Só em 1799 regressa à liberdade, para se entregar uma vez mais ao álcool, ao tabaco e ao trabalho, publicando o segundo tomo de Rimas. É então que os excessos de toda uma vida vêm cobrar a dívida e um aneurisma atira-o, definitivamente, para o leito. Em 1804, é publicado o terceiro volume de Rimas e, um ano mais tarde, em 21 de dezembro de 1805, morre o homem e a lenda começa o seu caminho.
«A lírica de Bocage é comparável à de Camões»
Estão em curso as Comemorações dos 250 Anos do Nascimento de Bocage, que decorrem em Setúbal entre setembro de 2015 e setembro de 2016, e é nesse enquadramento que surge Bocage a Imagem e o Verbo, uma edição luxuosa e de grande formato da Imprensa Nacional-Casa da Moeda cuja organização coube ao investigador bocageano Daniel Pires, que é também presidente da direção do Centro de Estudos Bocageanos, e que foi já responsável pela edição das obras completas do poeta, entretanto esgotadas. Trata-se de uma publicação que se propõe dar a conhecer as linhas de força da poesia, da biografia e da recepção de Bocage, e que o faz de forma algo sintética dando primazia ao abundante material iconográfico que reúne e que está organizado em quatro grandes temas essenciais: a época, a vida, a poesia e a posteridade do poeta.
O que há para si de mais instigador nesta figura?
Para começar uma poesia genial. A lírica de Bocage é comparável à de Camões. É uma poesia com uma grande especificidade; uma voz muito singular. Abriu portas ao romantismo e demoliu outras, mais concretamente o neo-classicismo. Isto embora tenha cultivado, quer um quer outro. A sua obra foi a verdadeira pedrada no charco naquela sociedade de finais do século XVIII.
E relativamente à pessoa?
É alguém que se colocou contra a corrente, e que foi remando na medida das suas forças. Vivia-se numa sociedade muito fechada. Uma pessoa não podia manifestar-se abertamente sob o risco de lhe cair em cima o poder de um Estado muito repressivo. Isto num país periférico, dominado por uma ínfima minoria, a nobreza, que suportava um aparelho fortíssimo e no qual sobressaía o Pina Manique. Nessa altura, as liberdades individuais eram praticamente inexistentes. A religião estava metida em tudo, com a Inquisição sempre vigilante. As prisões funcionavam como elemento dissuasor de qualquer irreverência. E Bocage enfrentou tudo isso, muitas vezes disseminando a sua poesia clandestinamente, anonimamente, textos que se espalham um pouco por todo o país.
Camões tornou-se o maior vulto da nossa língua, Bocage parece ter-se tornado um herói do folclore.
Em parte sim. Além da confusão entre o erotismo e a pornografia, isso resulta da confusão entre sátira e anedota, as muitas anedotas que lhe foram atribuídas, tantas delas boçais. Boa parte das anedotas que circularam como do Bocage estavam na mesma linha que as que têm o Alentejano como protagonista ou alvo. Houve extrapolações ao longo dos séculos que não resistem a uma análise histórica. Mas Bocage não deixa de ser conhecido pela obra que de facto escreveu. E a irreverência crítica, social, o humor, muitas vezes corrosivo, fazem dele um mito também.