‘Há pessoas que nunca se habituam a trabalhar com mortos’

Especialista no esqueleto, Eugénia Cunha trabalha há 20 anos com restos mortais de seres humanos. Vai regularmente ao estrangeiro ajudar a identificar ossos em valas comuns e explica o que é mais complicado quando se lida com corpos em avançado estado de decomposição.

‘Há pessoas que nunca se habituam a trabalhar com mortos’

Licenciada em Biologia, doutorada em Antropologia Biológica e especialista no esqueleto humano, Eugénia Cunha percorreu um longo caminho até assumir, em outubro de 2018, a direção da delegação do Sul do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses (INMLCF). Tem dezenas de artigos publicados na sua área, com temas que tanto podem dizer respeito a achados pré-históricos, como aos esqueletos dos combatentes de Aljubarrota, à amputação de pés e mãos na Estremoz medieval ou a uma tecnologia de ponta para determinar a idade dos ossos.

Disse-me que trabalhava com calotes cranianas. Que tipo de trabalho é esse?

Sou bióloga e antropóloga forense de formação. Estou há 20 anos no instituto como perita e as calotes são uma área a que me tenho dedicado. Trabalho com tudo o que tenha a ver com ossos e com corpos em avançado estado de decomposição.

Na sua formação como bióloga e antropóloga forense já lidava com restos mortais?

Desde sempre. Sou especialista no esqueleto e já me doutorei nessa área. E desde há 20 anos que estou ligada à medicina legal. Também trabalho muito a nível internacional. Vou muito ao Brasil, por exemplo – exatamente para ter mais experiência.

Mas o instituto não trabalha só com cadáveres, pois não?

Cerca de 80% do trabalho é com vivos. O INMLCF tem uma sede, que é em Coimbra, e depois tem três grandes delegações – Coimbra, Lisboa e Porto – e ainda uma rede de 27 gabinetes médico-legais espalhados pelo país, que funcionam dentro de hospitais. Sem falar dos serviços todos, há o Serviço de Química e Toxicologia Forense, que faz por exemplo análise do sangue dos condutores, para averiguar a taxa de alcoolemia, ou exames toxicológicos para complementar as autópsias – de mortes por intoxicação medicamentosa, entre outras. Temos o Serviço de Biologia e Genética Forense, que faz também vivos (testes de paternidade) e mortos (como recolha de ADN do morto, para comparar com familiares do suspeito). Depois tem a unidade de clínica e a unidade de patologia. Na unidade de clínica tem os penais, os exames de psiquiatria forense, as juntas de trabalho, a avaliação de dano corporal, que é uma coisa que se trabalha muitíssimo aqui. As pessoas associam sempre a medicina legal a mortes…

A autópsias…

Exato. Mas é uma ideia errada. As autópsias são entre 10 e 20% dos exames que se fazem aqui. São muitas – cerca de 1300/ ano – mas muito mais se faz aos vivos. Quando se entra neste edifício estão várias pessoas sentadas à espera de ser atendidas. Muita gente que tem um acidente de viação, por exemplo, vem aqui para avaliação de dano corporal.

Para efeitos de seguro?

De seguro e de indemnização por incapacidade de trabalho. 

E quando falamos de psiquiatria forense falamos de que tipo de situações?

Vamos dar um exemplo. Se um recluso está detido e queremos saber se ele é imputável ou não, fazemos o exame de psiquiatria forense para perceber. Um casal que se divorcia, e a mãe não quer deixar os filhos ficarem com o pai porque diz que o pai tem problemas do foro psiquiátrico ou psicológico, então vem para aqui para ser analisado. Outro caso: suspeita-se que a pessoa X cometeu abuso sexual. Pode vir aqui fazer exame. E também recebemos cá as crianças de três, quatro, cinco, seis anos que supostamente foram vítimas de abuso sexual.

Quantas pessoas trabalham aqui?

Aqui na delegação cerca de 85. Temos um serviço de receção de cadáveres que funciona 24 horas por dia.

Antes de assumir a direção, o seu trabalho passava por quê?

Sou consultora nacional para a antropologia forense desde 1997. O meu trabalho passava pelos corpos não identificados – tentar fazer a identificação e apurar as causas e circunstâncias da morte. 

Não é um trabalho um bocadinho pesado?

É pior trabalhar com os vivos. Os vivos têm expressão, têm reação, têm dor. Os mortos não. Estão ali, não têm expressão, estão sempre disponíveis, podemos ter o nosso tempo e a nossa concentração. Naturalmente há também o hábito e o gostar muito daquilo que se faz. Há pessoas que não se habituam nunca a trabalhar com mortos. E sobretudo com mortos em adiantado estado de decomposição, que é pior.

Como é que a pessoa se protege dos cheiros, por exemplo?

Usamos sempre uma máscara.

E é o suficiente?

Não. Temos de tomar banho muitas vezes quando acabamos. Eu trabalho no estrangeiro em crimes contra a humanidade, em valas onde chegam a estar 25 corpos de uma vez, e já aconteceu até ter de deitar fora a minha própria roupa porque eu lavava e ficava na mesma. O cheiro estava de tal maneira entranhado que não havia nada a fazer.

Como surge esse tipo de trabalho?

São organizações internacionais que me chamam para ir fazer valas comuns, etc.

Onde já esteve?

Gâmbia, Mali, estive muito tempo na Guiné. O último foi na Gâmbia, em julho.

Nesses casos consegue-se identificar a quem pertenciam os cadáveres?

Sim, o objetivo era identificar as vítimas e a causa da morte. Devolver a identidade. As famílias estavam lá todas a querer saber quem eram as pessoas, para terem a certeza de que aqueles eram os corpos dos seus entes queridos. Entrevistei as famílias todas e conseguimos chegar à identificação.

Há casos em que são esse processo é mais difícil?

Absolutamente. Os corpos estão completamente misturados numa vala comum. Uns bocados de uns, uns bocados de outros… Já não estão individualizados. Esse tipo de trabalho começa na altura em que são descobertos os restos [mortais]. Se a escavação for bem feita desde o início, facilita, se for mal feita pode até inviabilizar a identificação.

E não lhe faz confusão lidar tão de perto com a morte?

Não. É uma questão de…

De hábito?

De hábito e não só. Acho que é gratificante devolver a identidade a restos humanos, ver que as famílias podem finalmente fazer o luto e tudo isso. Alguém teria de fazer isto. Nós não gostamos todos do mesmo e uns gostam de umas coisas e outros gostam de outras.

Nem no início sentia mais relutância?

Não, mas há sempre casos que marcam mais. Não gosto nada de trabalhar com crianças, por exemplo. Há uns anos, se eu tinha o azar de me calhar uma criança da idade dos meus filhos, era uma coisa que me marcava muito. Disso não gosto. Mas não podemos escolher – ‘Faço isto, não faço aquilo’. Não pode ser, não é? Cada caso é um caso e nunca sabemos o que nos vai aparecer em cima da mesa.