Encenação e realidade

É muito estranho ver um assaltante pedir por favor ao assaltado que lhe passe o dinheiro. E este, com grande tranquilidade, propor-lhe uma negociação

Terça-feira da semana passada os telejornais transmitiram as imagens de dois assaltos extraordinários.

Num deles, um indivíduo entre os 50 e os 60 anos chega ao balcão de um pequeno supermercado de uma estação de serviço nos EUA, o comerciante regista na caixa uma compra que ele fez e pergunta-lhe se não deseja mais nada – e o cliente, com grande calma e educação, diz-lhe qualquer coisa como:

– Peço-lhe que me faça um favor: despeje a caixa registadora e entregue-me o dinheiro que lá está. É um assalto.

Enquanto isto, o educado ladrão empunhava timidamente uma pistola.

O comerciante ficou tão espantado – mas, ao mesmo tempo, sentiu-se tão seguro com os punhos-de-renda do improvisado assaltante – que lhe perguntou, com igual calma, se ele não aceitaria que lhe desse 40 dólares, e depois deixava-o ir-se embora em paz.

O ladrão respondeu que não, que tinha filhos para sustentar e contas para pagar, e que 40 dólares não lhe chegavam para nada. Insistiu, portanto, para o comerciante lhe dar todo o conteúdo da caixa.

O comerciante lá acabou por entregar-lhe, com bons modos, os trezentos e tal dólares, em notas e moedas, que estavam na caixa registadora, ouvindo-se o assaltante dizer ao recebê-los:

– Lamento esta situação. E se um dia tiver condições para isso, devolvo-lhe o dinheiro.

A notícia acabou com o jornalista a dizer que o comerciante está agora empenhado em que o assaltante não seja condenado.

Outra notícia: as imagens mostram um grupo de seis homens batendo com enormes martelos-pilões nos vidros das montras de uma ourivesaria, mas sem conseguirem parti-los. Parecia milagre: os homens batiam, batiam, com martelos gigantescos nos grandes vidros do estabelecimento e estes permaneciam orgulhosamente intactos.

Então, vê-se vir a correr pelo passeio uma velhota baixa e desengonçada, vestida de vermelho, brandindo no ar uma mala de mão. E, quando chega ao pé dos assaltantes, começa a bater-lhes com a mala, varrendo-os positivamente do local. Apanhados de surpresa pela energia da velhota, qual furacão justiceiro, os assaltantes batem em retirada, saltam para três lambretas (hoje chamadas ‘aceleras’) e arrancam em grande velocidade.

A cena não tinha ainda terminado. Uma das lambretas escorrega no pavimento e cai, um dos meliantes é apanhado por populares e imobilizado por um transeunte com um joelho nas costas, o outro foge a correr. Segundo a notícia, os restantes assaltantes seriam apanhados pela Polícia pouco tempo depois.

Não me tenho por uma pessoa desconfiada, antes pelo contrário, mas ambos os episódios são difíceis de engolir. É muito estranho ver um assaltante pedir por favor ao assaltado que lhe passe o dinheiro. E ver este com enorme tranquilidade – apesar de estar sob a ameaça de uma pistola – propor uma negociação: dou-lhe 40 dólares e deixo-o ir-se embora. Ora, se o assaltante tinha hipóteses de levar o dinheiro todo, por que haveria de contentar-se com uns modestos 30 euros?

Mas as outras imagens são ainda mais estranhas, parecendo saídas de um filme de banda desenhada. Então um grupo de seis meliantes armados com enormes martelos bate em retirada perante o ataque de uma velhota que tem como única arma uma mala de senhora? Mesmo apanhados de surpresa, não seria mais natural que os assaltantes dessem uma martelada na velha em vez de fugirem como coelhos? Até porque tinham as cabeças protegidas por capacetes de motard, não lhes fazendo portanto mossa as pancadas da mala de mão, por muita força que a velhota tivesse.

E a forma como a senhora estava vestida, toda de vermelho (fazendo lembrar o Capuchinho Vermelho em versão idosa), também levanta suspeitas: parece ter sido pensada precisamente para dar nas vistas, para se distinguir facilmente nas imagens, para se ver bem à distância quando vinha a correr pelo passeio fora.

Falando directamente, caro leitor, fiquei com a forte suspeita de estarmos perante imagens falsas, episódios forjados. Nos últimos anos, com o avanço da globalização e das novas tecnologias, criou–se uma nova indústria que move milhões: a indústria dos pequenos vídeos, em geral amadores, que alimentam sites como o YouTube, sendo também vendidos aos canais de televisão.

Estes pequenos vídeos, quando são realmente bons, valem ouro. São exportados para todo o mundo e vistos por milhares de milhões de pessoas. Ora, quando não existem cenas ‘reais’ suficientemente interessantes para provocar o furor dos internautas, o que fazer? Naturalmente, inventá-las.

Até porque, como os consumidores aumentam todos os dias e o mercado é cada vez mais extenso, há cada vez maior necessidade destas imagens. As exigências da sociedade mediática são hoje insaciáveis.

Não é, pois, de estranhar que comecem a aparecer progressivamente com maior frequência vídeos forjados, encenados, filmados como se fossem realidade, para alimentar essa gigantesca indústria.

No que respeita aos dois pequenos vídeos que descrevi, são tão inverosímeis que parecem o gato escondido com o rabo de fora – ou mesmo o rabo escondido com o gato de fora. Mesmo que fossem reais, seriam tão inacreditáveis que pareceriam encenados. Embora tenham passado em telejornais como histórias verídicas, com direito a tratamento noticioso.

Mas não tenhamos dúvidas: cada vez mais o real e o forjado vão confundir-se. Cada vez teremos mais dificuldade em perceber o que é real e o que é encenado. O que é terrível – porque chegará o dia em que não acreditaremos na própria realidade. Em que veremos cenas verídicas com enorme indiferença, dizendo: «Oh, isto é tudo encenação…!».

Se calhar, as imagens que descrevi ao leitor são mesmo reais – e eu não acreditei nelas. Ficção e realidade começam a misturar-se. Nesta sociedade do espectáculo, é já difícil saber onde acaba a verdade e começa a ficção.