Fado

Confesso que sou pouco português em quase tudo menos na paixão pelo fado, pela guitarra portuguesa e pelos fadistas

é bom sinal que um novo disco de camané tenha criado tanta expectativa. a mesma, afinal, com que, durante anos, esperávamos os últimos discos de brassens, ferré, brel ou gainsbourg, o novo disco de sinatra, bob dylan ou dos beatles, como se fossem uma dádiva dos deuses, uma coisa que não existia antes e que passava a fazer parte da nossa vida e da nossa memória.

o fado foi, nos últimos anos do antigo regime, diabolizado pela esquerda. amália, que cantou poetas como manuel alegre, david mourão-ferreira, ary dos santos, alexandre o’neill, o próprio camões, fazendo «subir ao povo», como disse pedro homem de melo, a grande poesia, foi acusada de fascista a seguir ao 25 de abril. felizmente, esse tempo de intolerância e estupidez passou depressa. hoje, uma nova geração de fadistas – cristina branco, aldina duarte, ana moura, carminho, camané e tantos outros – abraçou o fado como uma vocação, elegeu amália, marceneiro ou outros como seus mestres, e decidiu tentar coisas novas. confesso que sou pouco português em quase tudo menos na paixão pelo fado, pela guitarra portuguesa e pelas vozes estóicas dos fadistas.

no início, o fado era uma música que se cantava nas casas típicas, e a reputação dos seus autores era quase clandestina: os letristas e os músicos eram gente que ninguém ousava elevar à categoria de poetas nem de compositores. mas o talento, quando não o génio, estava lá. as letras de silva tavares, de henrique rêgo ou de linhares barbosa e do próprio marceneiro, que ele cantava e muitas vezes musicava, as de alberto janes, josé galhardo ou frederico de brito, para não falar da própria amália, criaram um repertório fabuloso mas que, por mais popular, nunca morou na estante da grande poesia. foi alain oulman que, ao trazer os poetas para o fado – mesmo se essa ousadia foi mal recebida por muita gente –, reparou essa injustiça e deu ao fado as suas ‘cartas de nobreza’.

com dos amores e dos dias, que acaba de sair, camané fez talvez o seu disco mais pessoal. a produção, direcção musical e arranjos (além de algumas músicas originais) volta a ser de josé mário branco, cujo contributo para a música portuguesa é incalculável (lembremo-nos do fabuloso trabalho que fez para zeca afonso, por exemplo). camané dá a este disco uma organização temática à volta do amor, recorrendo a fados tradicionais com novas letras e novos arranjos, ou a originais, como o de sérgio godinho, por exemplo. mas é justo destacar o papel de manuela de freitas, que há muito escreve para ele, e cujo ‘guerra das rosas’, que ela assina neste disco, é já um clássico na biografia do fado. mas se eu tivesse de saudar a eleição de um tema, seria ‘lúbrica’, que marca, que eu saiba, a entrada no fado do maior poeta português dos tempos modernos: cesário verde – que sempre me interroguei por que razão não era um dos grandes inspiradores dos nossos fadistas.

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