acto 1. terça-feira passada fui assaltado por uma irritante dor de dentes e dirigi-me à farmácia mais próxima para adquirir um anti-inflamatório que a mitigasse. à minha frente tinha três senhoras, duas idosas e uma terceira, mais nova, protegida por um respeitoso quadrúpede. nos três casos, os medicamentos que iam adquirir tinham perdido, nesse mesmo dia, as comparticipações que os tornavam acessíveis. aquelas três senhoras estavam a confrontar-se com as novidades do ‘pec’. para duas delas, não fora, seguramente, a primeira vez. já sabiam que as respectivas pensões congelaram e que o eléctrico que usam está mais caro.
a austeridade é uma caixinha de surpresas, uma descoberta permanente através de uma estrada de sentido único. dito assim, o fmi já cá está: chama-se pec.
acto 2. na televisão, surgem as imagens de uma senhora desesperada de pobreza pedindo ajuda a cavaco silva em campanha. o candidato atira-se primeiro à concorrência – que o acusa de ter uma estratégia caritativa para a pobreza, veja-se lá a ofensa – e em seguida recomenda: «vá a uma instituição de solidariedade, mas que não seja do estado». apetece dizer ao senhor presidente que só há instituições de solidariedade porque beneficiam de recursos públicos. mas o ponto não é esse. o ponto é um chefe de estado recomendando à pobreza que se dirija à sopa mais próxima desde que não seja a da casa pela qual tem a obrigação de responder. não se acredita, mas nem é o pior. sendo múltiplas as vias de entrada da crise na vida e nos bolsos das pessoas, todas têm o condão de agravar as desigualdades, ou seja, a distância entre os mais ricos e os mais pobres. cavaco silva tem a obrigação de saber que as redes de solidariedade, por fortes e generosas que sejam, podem responder a problemas individuais, mas não à questão social que eles exprimem.
cavaco silva não é apenas um homem conservador, ele é também um candidato antiquado, que encara as políticas sociais para o século xxi com os olhos do século xix. mais uns anitos e ainda acaba a dizer às mulheres que deixem de trabalhar para combater o desemprego. a tanto ainda não chega, ao que se sabe, o fmi.
acto 3. correu melhor do que se esperava a emissão de dívida pública da passada quarta-feira. ainda bem, que o país precisa, quer de ‘notícias boas’, quer ‘das menos más’. quem ficou triste? quem suspira e transpira pelo fmi. é que ele já cá está e ainda não está.
se portugal acabar por recorrer ao fundo europeu e ao fmi, os resultados serão piores do que os impostos pela especulação. o juro baixaria, mas a factura inclui novas descidas nos salários, nas despesas sociais e no aumento do desemprego.
na verdade, o fmi é a desculpa externa de que a direita precisa para a austeridade reforçada com que sonha. não é, professor?