Marcello Caetano e Diogo Freitas do Amaral: tão diferentes, tão iguais

1 – No passado domingo, decidimos tirar o dia para serenamente percorrer Lisboa a pé e reflectir sobre a vida, suas peculiaridades, suas dificuldades e seus encantos, abstraindo totalmente da política. Eis senão, quando já vislumbrando a lua vermelha no céu lisboeta, nos chegou uma notícia, não vermelha, mas com tons cor-de-rosa: Diogo Freitas do…

2 – O que é muito curioso: aquando da candidatura de José Sócrates, nos idos de 2005, Diogo Freitas do Amaral havia-se quedado, apenas e só, pelo artigo muito abonatório em relação à personagem do então líder socialista na “Visão” ; agora, com Costa, Freitas do Amaral rendeu-se à moda (à tentação?) da arruada socialista. Será um sinal de desespero da máquina de propaganda socialista? Será já um sinal de que vale tudo para evitar a muito provável derrota? Porventura. Não sabemos. O que sabemos é que já surgiu o seguinte comentário, com muita piada, nas redes sociais: se Diogo Freitas do Amaral publicou um artigo para ajudar José Sócrates e foi convidado para Ministro – então agora que decidiu juntar-se à campanha socialista, para além de escrever e publicar na mesma revista um artigo pró-socialistas, será convidado, se António Costa vencer, para candidato do PS à Presidência da República ou para um cargo institucional ou internacional de relevo.

3 – Mas, enfim, como escrevemos supra, o domingo foi o nosso dia de reflexão sobre a vida – e não sobre a política. Política é uma faceta relevantíssima da vida de todos nós: mas – que diabo! – a vida é muito mais que a política. Não reflectimos sobre as opções políticas de Diogo Freitas do Amaral. No domingo, reflectimos, a partir do exemplo de Diogo Freitas do Amaral, sobre as ironias subtis, maldosas, quase mefistofélicas, da vida. Ou de como o discípulo acaba por ter a mesma sorte que o Mestre.

4 – Reflectimos, pois, sobre o percurso e o fado de dois ilustres portugueses: Marcello Caetano e o já aludido Diogo Freitas do Amaral. A biografia destas (já) duas figuras históricas é por demais conhecida. Relembramos apenas que Marcello Caetano, oriundo de uma região (e de uma família) pobre, ingressa na Faculdade de Direito de Lisboa onde se revelou um aluno brilhante, embora sem nunca se apaixonar pelos estudos jurídicos enquanto aluno da licenciatura. Mas a paixão, embora tardia, deu amor e o amor levou ao casamento: Marcello Caetano acabou por fazer uma carreira académica notável, influenciando ainda hoje o ensino do Direito Administrativo e criando uma escola de Direito Público. Escola de Direito Público que abrange nomes como Miguel Galvão Telles, Marcelo Rebelo de Sousa, Robin de Andrade, Jorge Miranda, entre outros. O ensino de Direito Administrativo de Marcello Caetano revelou-se influenciado pelas escolas administrativistas francesa, italiana e espanhola, sobretudo a partir do período da sua ligação com López Ródo, notável administrativista espanhol e um nome sonante do Opus Dei. Embora as concepções político-constitucionais de Marcello Caetano se reconduzissem às características de um regime autoritário, de um corporativismo autoritário, nunca se convertendo à democracia, a verdade é que as lições de Marcello Caetano, pelo seu brilhantismo e nível dogmático, seriam facilmente convertíveis a uma democracia de bem-estar social, assim houvesse outro génio jurídico capaz de proceder a tal adaptação. Seriam e foram. Porque apareceu esse génio jurídico – o discípulo dilecto de Marcello Caetano de seu nome, precisamente, Diogo Freitas do Amaral.

5 – Se Marcello Caetano foi o “pai” do Direito Administrativo português até à década de 1990, a partir de então Diogo Freitas do Amaral foi um excelente “filho” com alguma rebeldia, numa primeira fase (em que actualizava e mantinha a publicação do Manual de Direito Administrativo de Marcello Caetano, ainda hoje muito vendido), e depois um digno “herdeiro” do magistério de Marcello Caetano. A teoria do acto administrativo, do regulamento administrativo, das garantias dos particulares – isto é, a teoria sobre como pode o poder administrativo (Ministérios, Direcções-Gerais, Finanças, Câmaras Municipais…) exercer a sua autoridade e como é que os particulares podem controlar e reagir, defendendo os seus direitos, contra o poder público – foi gizada, em grande medida, por Marcello Caetano e, depois, por Diogo Freitas do Amaral. Falar da construção teórico-dogmático de Marcello Caetano é também falar da sua adaptação às novas concepções constitucionais levada a cabo por Diogo Freitas do Amaral. Academicamente, portanto, Mestre e discípulo estão unidos. Cruzaram os seus caminhos nesse labirinto que é a História.

6 – E politicamente? Mais uma vez, Marcello Caetano e Diogo Freitas do Amaral estão unidos, apesar das suas diferenças. A diferença essencial é que um sempre defendeu um regime autoritário – o outro defendeu e defende um regime democrático. Apesar desta diferença, as coincidências de percurso, politicamente falando, entre Mestre e discípulo são várias. Desde logo, ambos são conservadores intervencionistas – quer Marcello Caetano, quer Diogo Freitas do Amaral defendem uma concepção conservadora da sociedade (embora Freitas do Amaral o negue, na prática, mantém-se fiel ao seu pensamento socialmente conservador), defendendo velhas tradições e concepções alicerçadas no catolicismo ortodoxo, embora com uma presença forte do Estado em matérias sociais. Quer o Mestre, quer o discípulo concordam com a necessidade de o Estado assegurar prestações sociais básicas.

7 – Em segundo lugar, quer Marcello Caetano, quer Diogo Freitas do Amaral têm um pensamento político muito flexível, dotado de uma grande plasticidade. Isto é, ambos têm um pano ideológico de fundo que é concretizado depois de acordo com as circunstâncias de cada momento – Marcello Caetano foi, dentro da ditadura militar e do salazarismo, integralista; adepto da Constituição de 1933 e corporativista puro; autoritário, mas não defensor da ditadura do modelo salazarista; defensor de uma ditadura menos “musculada” a preparar caminho para a abertura do regime. Diogo Freitas do Amaral, por sua vez, foi um marcelista não fanático; um liberal-conservador; um centrista puro; social-cristão; e agora, socialista. O que significa que não há uma convicção político-ideológica bem vincada nem em Marcello Caetano, nem em Diogo Freitas do Amaral. Porventura tal se deverá ao seu gosto pela crítica, pela discussão de ideias, pela argumentação – ficando fascinados pelos argumentos de posições contrárias à sua que revelam inteligência, perspicácia analítica e raciocínio claro. O deslumbramento do académico prejudicou a acção do político. Quer em Marcello Caetano, quer em Diogo Freitas do Amaral.

8 – Por outro lado, Marcello Caetano e Diogo Freitas do Amaral acabaram politicamente por ser dois “vencidos da vida” no sentido queirosiano: ambos estiveram quase sempre do lado errado da história – ora porque chegaram demasiado tarde aos cargos ou foram muito lentos na leitura política da situação; ora porque tiveram razão demasiado cedo. Há, no entanto, na carreira política do Mestre e do discípulo, um descompasso permanente com o ritmo da História. Diogo Freitas do Amaral, tal como Marcello Caetano, ficaram os livros da História de Portugal como dois políticos derrotados – embora com um papel muito relevante. É que Marcello Caetano, primeiro, e Diogo Freitas do Amaral, depois, são os dois “patriarcas” da direita democrática portuguesa. Se não fosse a acção de Marcello Caetano e Diogo Freitas do Amaral, o sistema partidário português hoje seria bem diferente.

9 – Se não fosse Marcello Caetano o substituto de Oliveira Salazar em 1968, mas um “ultra” do regime, a Ala Liberal não se teria formado e Sá Carneiro, Francisco Pinto Balsemão, Miller Guerra ou Mota Amaral não teriam entrado na Assembleia Nacional. Se não fosse o alívio da censura o “Expresso” talvez não tivesse sido criado e não se formaria a base que esteve na criação do PPD – o mesmo se poderá dizer da SEDES, que fez ingressar um conjunto de jovens tecnocratas na política e que constituiriam os quadros do novo regime democrático (quer do CDS, quer do PPD, quer do PS).

10 – Da mesma forma que Diogo Freitas do Amaral foi essencial, com a coragem (psicológica, mental e física, para além de política) para evitar que o espectro político-partidário português tivesse como fronteira o centro-esquerda. No fundo, Diogo Freitas do Amaral deixa-nos como legado o direito a não sermos de esquerda: de sermos uma direita livre, que acredita na força do indivíduo e na sociedade como comunhão de esforços de todos e de cada um. E a sua candidatura presidencial, em 1986, ajudou a galvanizar o espaço do centro-direita, chamando jovens, mulheres e quebrar o mito da associação da direita aos “botas de elástico”. Como o próprio Freitas do Amaral já escreveu, a sua candidatura contribuiu decisivamente, porque construiu uma estrutura e uma rede de apoiantes, para as maiorias absolutas do PSD de Aníbal Cavaco Silva.

11 – No entanto, tal como a tentativa de abertura do regime autoritário por parte de Marcello Caetano falhou, ficando Caetano para a História como um político hesitante, incapaz de implementar um programa político- Diogo Freitas do Amaral ficará para a História como um líder político de hesitações, de ambiguidades, de derrotas eleitorais. Marcello Caetano deixou cair o regime em que acreditara durante tantos anos, pelo concurso de razões subjectivas e objectivas – Diogo Freitas do Amaral deixou o seu próprio partido negar a sua tese do “ora vira à esquerda, ora vira à direita”, acrescentando à sua sigla CDS as duas letras que hoje mais o definem (e bem): PP, Partido Popular.

12 – Enfim, dois académicos brilhantes, com uma obra essencial e uma influência exercida sobre o legislador determinante – que ficarão, na História, unidos por um destino político malfadado. Por isso é que qualquer apelo ao voto feito por Diogo Freitas do Amaral não acrescenta nada a António Costa, nem acrescentaria a Passos Coelho – ao contrário do que acontece quando Diogo Freitas do Amaral escreve regulamentos administrativos ou sobre o novo regime dos contratos públicos.

13 – É pena, no entanto, que quem, em 1986, prometia levar “Portugal Prá Frente!” não queira hoje, em 2015, contribuir para colocar “Portugal à Frente”…