Reflexão para quê?

Perguntei a Passos Coelho qual o maior arrependimento desde que é líder do PSD. Referiu-se à polémica do aborto e confessou que pode ser ingénuo, mas faz questão de dizer a verdade.

estamos a regressar de bragança e um dos três convivas da carrinha, perante o glorioso fim de tarde, comenta sobre a incrível diversidade geográfica do nosso país – concluindo, «portugal é mesmo bonito». de pronto, o heróico condutor de 1.000 km num dia dispara com doce sarcasmo, para combater o natural cansaço: «sim, e teremos oportunidade de confirmar isso mesmo quando lá chegarmos».

estivemos com pedro passos coelho e, note-se, voluntariamente. podíamos ter ido de avião mas, e como era a primeira vez lá tão atrás do marão para todos, resolvemos ser homens. explico a aventura em três penadas: os meus dois companheiros de viagem, que não militam no psd nem em qualquer outro partido, propuseram a ppc a realização de alguns ‘facebook town hall’ – em que o candidato laranja se dispõe a responder pessoalmente a perguntas enviadas pelos internautas, num evento transmitido em directo nessa rede social. passos coelho quis alguém independente a moderar; o convite chegou até mim; e foi aceite – sobretudo por admirar a iniciativa (franca) e a disponibilidade (democrática) daquele que, apesar da minha ligação romântica ao pan (e transmutada em voto daqui a dois dias), espero sinceramente venha a ser o próximo primeiro-ministro de portugal.

resumo: a conversa de uma hora decorreu ao fim da tarde numa pousada de bragança, 5.ª, 26 de maio. conheci ppc nem 5 minutos antes de começarmos. o dia estava desde cedo marcado pela referência de passos coelho ao aborto. o único pedido da comitiva laranja foi que evitasse o assunto pois o psd andava a tentar desfazer a tempestade entretanto criada num copo de água. as perguntas do town hall foram escolhidas por mim e por um dos meus companheiros de viagem. acrescentei umas três ou quatro de minha lavra (curiosamente, a questão ‘aborto’ era pouco abordada pelos internautas). posso garantir que a tudo, mais algumas questões dos presentes na assistência, ppc respondeu sem hesitar e com franqueza. o leitor poderá nem ter sabido deste evento, por duas razões: a polémica criada à volta da referência ao aborto anulou quase tudo o resto, e ainda há muitos jornalistas que desconfiam das redes sociais.

o momento alto foi quando perguntei a passos coelho qual o seu maior arrependimento desde que é líder do psd. e então o próprio acabou por se referir à polémica do aborto. confessou que talvez seja demasiado ingénuo, mas faz questão de dizer a verdade (se houver petições em número suficiente – e para já não consta que existam – admite reavaliar a lei do aborto). tão simples como isso. terminada a hora em directo para o facebook, estivemos uns minutos à conversa, bem agradável por sinal, e por sua iniciativa. reflectir para quê? espero estar hoje de novo com ele, no town hall de lisboa.

ii – 88, uma história verídica

a senhora gostava de ouvir os grilos, todas as noites a mesma conversa dos ditos era para ela um bálsamo para os ouvidos. dizia aos netos que conseguia traduzir o que estes insectos cochichavam quando já não tinham humanos intimidatórios por perto e daí fabricava as histórias com que os embalava, um por um, anos a fio, até à contagem total de 20, ao fim da noite – enquanto os grilos continuavam o seu alegre congresso diário. «que dizem eles agora, vó?», «que está na hora da caminha» – sorria a octogenária à neta mais recente.

aos 88 anos de idade, a senhora fazia descrer daquela máxima que dá garantias sobre a eficácia da ruindade no prolongar da vida. a ela, deus – em quem acreditava – não resolveu retirar do nosso convívio precocemente. 88 anos felizes, como fazia questão de dizer, sem um comentário maledicente sequer, sem inimigos, sem sonhos por realizar (os seus eram simples: lavrar a terra, ter para si e para os seus, amar tão completamente que merecia ver o seu nome acrescentado à respectiva entrada do dicionário sobre o sentimento – nela sinónimo de ‘dar’).

o neto mais velho, curioso das religiões, gostava nos últimos tempos de lhe perorar sobre o budismo. a senhora sorria, benevolente, mais interessada na companhia do rapaz do que propriamente em compreender coisas que, jurava, «já não são para a sua idade». ciclo curioso, este: começamos, em crianças, por ser demasiado novos para certos assuntos; terminamos, em velhos, pelos vistos a completar o círculo.

a poucos dias de completar 89, a senhora, viúva há mais de uma década, resolveu fazer exames. uma precaução tranquila, check-up de rotina, sem queixumes prévios. antes de se dirigir ao médico, brincou de manhã com a neta mais nova, carregando-a às cavalitas como sempre fizera com os anteriores – como se nada fosse.

no consultório, doce explicou ao que vinha, e o jovem doutor retirou-se, pedindo-lhe que no entretanto vestisse a bata da praxe e se deitasse, esperando um pouco, na marquesa. quando regressou, a senhora sorria, de olhos fechados, impecavelmente no aguardo de um compromisso impossível. estava serena, aparentemente feliz, quase bela, e morta. o médico gelou ao aperceber-se, com vagar, do que sucedera. o tique-taque do relógio de parede pareceu aumentar de volume, ameaçando sangrar–lhe os tímpanos. era demasiado inexperiente e aquele evento por demais inusitado para capturar logo ali a poesia do sucedido. a senhora de 88 anos, quase 89, partira com a tranquilidade merecida e digna dos justos.

no funeral, o tal neto veio falar-lhe do karma. e a netinha reparou que os grilos começaram a falar bem cedo, ainda o sol estava alto, quando as pessoas se dirigiam para a saída.

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