Revista à portuguesa

Apesar da sua qualidade e dignidade, a revista Ficções sempre passou despercebida. A não ser para um pequeno grupo de fiéis.

claro que uma biblioteca bem apetrechada é importante, mas penso que o derradeiro sinal de distinção do intelectual cosmopolita é a imprensa que lê. nomeadamente as revistas estrangeiras de grande prestígio, esse formato a meio caminho entre a efemeridade de um jornal e a perenidade de um livro. dietrich shawanitz, o autor do ambicioso compêndio cultura, tudo o que precisa de saber, recomendava a new york review of books como o nec plus ultra da informação e opinião. a nyrb tem críticas de livros, de exposições e de filmes, mas também poemas ou artigos de opinião sobre temas quentes da política americana. foi lá que li um texto que me assombrou: night, de tony judt. ali, o conhecido historiador falava sobre a doença que acabaria por matá-lo meses depois: «é então que chega a noite. adio a hora de ir para a cama até ao último momento possível […]. uma vez ‘preparado’ para a cama sou levado para o quarto na cadeira de rodas onde passei as últimas dezoito horas».

anyrb tem uma qualidade excepcional, mas às vezes peca pela densidade dos artigos. e há outras revistas literárias, como a new yorker, que ao longo dos anos tem publicado textos de antologia, a granta, que se auto-intitula «a revista da nova escrita», ou a paris review, com ensaios notáveis sobre a arte da ficção e entrevistas célebres aos grandes autores do século xx (compiladas em livro, mas também disponíveis no site da revista).

em portugal também tivemos a nossa revista de culto. apesar da sua qualidade, dignidade e originalidade, passou sempre despercebida, a não ser para um número restrito de fiéis. refiro-me à ficções, a revista de contos.

a ficções existiu durante cerca de nove anos. quando surgiu, em 2000, propunha-se a criar uma tradição na área do conto. e cumpriu essa função exemplarmente, encorajando novos autores portugueses, chamando a atenção para pérolas pouco conhecidas e patrocinando novas traduções (deu origem até a uma oficina de tradução). à parte das edições regulares, lançou números temáticos dedicados ao humor, cinema ou comida.

tive a felicidade de tomar conhecimento da ficções ainda ela estava bem viva, através de uma pessoa amiga que anda sempre bem informada. desde o primeiro contacto que nunca mais abdiquei de adquirir os números acabados de sair e, aos poucos, fui encontrando, sempre meio esquecidos e a um preço irrisório, os que me faltavam. hoje posso orgulhar-me de possuir a colecção quase completa. e ainda não desisti de arranjar os dois ou três exemplares que me faltam.

é costume dizer-se que em portugal só se fazem homenagens a pessoas mortas. durante muito tempo esperei que saísse um novo número da ficções para lhe dedicar uma crónica. há poucos dias, estranhando tanta demora (a publicação era algo irregular), fui ver se ainda existia. passaram três anos sobre a última edição e já não existe, o que me deu o infeliz pretexto para a crónica há muito devida. o texto que apresentava o n.º 1 falava de «romper este círculo infernal» que era o facto de não se publicarem contos, o que fazia com que ninguém os escrevesse. a ficções encerrou, mas acredito que depois dela o círculo infernal não mais se voltará a fechar.

jose.c.saraiva@sol.pt