Soares

Nunca tive nada em comum com o Mário Soares, sendo que uma das facetas que mais me distinguia dele é a doutrina cristã que sempre orientou o meu crescimento. Ao contrário de Soares, ateu confesso e que se exaltava com o desaparecimento físico de um opositor, fazendo fé nas suas próprias palavras ao vangloriar-se de…

Por isso, ao oposto de muitos, certamente imbuídos por um espírito de repulsa pela maldade que Soares trouxe para o seio da nossa sociedade, nesta hora em que a sua vida terrena teve o seu epílogo não exulto de alegria.

Mas também não verto nenhuma lágrima fingida, entrando no jogo do politicamente correcto que transforma os recém defuntos, por piores espécies que tenham sido em vida, em seres bons e merecedores de um luto intenso por parte dos seus contemporâneos.

Não, Soares foi sempre uma pessoa má, rancorosa, egoísta, mal-educada, presunçosa, vaidosa e que pautou todo o seu percurso de vida pública colocando os seus interesses pessoais acima dos do colectivo.

Um dos mitos propagados pelos arautos do regime é de que a ele devemos a liberdade em que vivemos. É verdade que durante o período revolucionário mais crítico que transformou Portugal em cactos, Soares colocou-se do lado da barricada daqueles que combatiam o caminho para uma ditadura comunista que, a determinada altura, parecia irreversível. Mas não foi o único e nem sequer o mais determinado.

Não fosse a teimosia de Sá Carneiro, que nunca se conformou com a tutela militar que então se queria eternizar nos diversos órgãos do Estado, empenhando-se num combate que acabou por lhe custar a própria vida, muito provavelmente Soares não teria saído vitorioso da sua contenda com a extrema-esquerda revolucionária.

Mas há uma verdade histórica que tem que ser reposta: é aos militares, hoje ostracizados pelo poder político, que devemos a liberdade que respiramos, e não a alguém que então se passeava num exílio dourado em Paris e que não teve que mexer uma palha para o derrube do regime na altura vigente.

E também é verdade que foi pela mão de Soares que Cunhal regressou num ápice a Portugal, escassos dias após a abrilada, integrando, juntamente com outros camaradas do partido, o governo dela saído, permitindo-se, com essa jogada, que os comunistas tenham desencadeado um autêntico assalto aos vários poderes do Estado, cuja consequência foi a quase destruição do nosso tecido económico e financeiro, então robusto, fatalidade que perdura até ao presente.

Foi igualmente pela mão de Soares que se assistiu ao mais dramático e vergonhoso processo da História contemporânea portuguesa, com o abandono à sua sorte dos povos ultramarinos então à nossa responsabilidade, condenando-os a décadas de guerras e pobreza extrema.

Também pela mão de Soares os portugueses viram a sua independência parcialmente perdida e a sua dignidade ferida, ao sucumbirem às exigências exteriores dos dois resgates financeiros a que as asneiras das políticas por ele protagonizadas nos conduziram.

Mas tenho que reconhecer que há um cognome que lhe é atribuído com toda a justiça e que lhe assenta como uma luva: o de ser o pai da nossa democracia! 

A democracia da intriga, traição e guerrilha permanente, em que não se olham a meios para se atingir os objectivos que raramente se identificam com o interesse nacional.

A democracia das jogatanas, em que praticamente todas as obras do regime se decidem em função do benefício dos amiguinhos, optando-se pela sua concretização mesmo quando todos os estudos apontam para a sua inutilidade e para resultados ruinosos para as finanças públicas.

A democracia do enriquecimento desmesurado daqueles que até enveredarem por uma carreira política não passavam de uns pés-descalços burgessos e saloios, completos desconhecedores dos valores da honra e da integridade.

A democracia do colarinho branco, onde o pagamento de luvas constitui o passaporte para o sucesso nas negociatas com as diversas autoridades estatais, sejam locais ou de âmbito nacional. 

A democracia do avental, em que poderes obscuros e nunca sufragados se disseminam por todos os órgãos do Estado, tomando as rédeas da condução dos destinos do País.

A democracia do subsídio, em que toda uma panóplia de fundações, que apenas servem para perpetuar o ego dos seus mentores, sobrevive à custa do dinheiro que é pertença de todos nós.

A democracia da corrupção, em que o dinheiro por baixo da mesa se torna na condição obrigatória para a celeridade, quando não para a própria aprovação, de qualquer processo que envolva entidades públicas.

A democracia da mediocridade, em que políticos imberbes formatados nas jotas inundam os gabinetes governamentais, sem que antes tenham desempenhado qualquer actividade profissional de relevo.

A democracia dos desenvergonhados, em que gente sem escrúpulos e cujo devido lugar seria atrás das grades ascende aos mais altos cargos da hierarquia do Estado.

Sim, é verdade, a Soares devemos, em grande parte, esta democracia que há quatro décadas nos mantém na cauda do mundo civilizado e em que, diariamente, se cava um fosso cada vez maior que nos afasta dos países mais evoluídos com quem partilhamos as instituições europeias.

Mas, como bem sabemos, a História é escrita pelos vencedores, e os da actualidade, os guardiães do Portugal de Abril, na ausência de heróis autênticos, reconhecidos por feitos em prol da Pátria, fabrica-os.

Basta, para tal, branquear o seu obscuro passado e enaltecer eventuais predicados que os tenham distinguido dos demais.

E assim se construiu o mito Soares.

Pedro Ochôa