Igrejas e abusos sexuais

Amanhã é Natal. Este será o 13.º ano que a família do Rui Pedro passará esta data com a angústia da sua ausência. Angústia que será eventualmente ainda maior por não terem tido o direito de fazer o seu luto, se for caso disso.

filomena, a mãe coragem, não desistiu ao longo de todo este tempo. foi achincalhada por aqueles que tinham o dever de lhe procurar o filho, foi chamada de louca, foi objecto de assédio sexual.

amanhã ela não terá o seu filho à mesa. mas sabe que o julgamento está a decorrer – e sabemos todos que, caso os primeiros responsáveis pela investigação tivessem cumprido o seu dever, o resultado poderia ser outro.

ao ser confrontada com os resultados do relatório elaborado por uma comissão independente nomeada pela conferência episcopal da igreja católica liberal holandesa (*) sobre abusos sexuais em instituições pertencentes à mesma igreja, durante os últimos 60 anos, fiquei fisicamente perturbada.

um longo vómito invadiu-me todo o corpo.

dezenas de milhares de crianças foram vítimas neste período de várias formas de abuso em instituições sob tutela dessa igreja. vítimas de cerca de 800 abusadores identificados, padres e leigos, que compunham o staff das referidas instituições.

a igreja holandesa pediu formalmente desculpas, e afirma que vai indemnizar as vítimas.

sei por experiência compartilhada que não há indemnização que possa devolver a qualquer cidadão o equilíbrio emocional e físico que lhe foi roubado. que possa apagar as sensações de medo, vergonha ou culpa que os predadores lhe transmitiram enquanto os vitimizaram, sabendo que tinham sobre aquelas crianças um poder psicológico superior ao poder físico.

muitos destes cidadãos têm as vidas destruídas para sempre. alguns tornaram-se mesmo angariadores de outras crianças, quando deixaram de satisfazer o apetite dos seus abusadores.

ainda não tinha digerido a força desta notícia quando no domingo, 18 de dezembro, logo pela manhã, começaram a cair no meu telemóvel sms alertando para a entrevista de d. josé policarpo, patriarca de lisboa, no diário de notícias.

entre análises sensatas sobre a realidade social, política e económica do país, na página 3 do jornal, em caixa, há perguntas e respostas apenas sobre sexo, pedofilia e preservativos.

o sexo é, do meu ponto de vista, no século xxi, o grande tabu da igreja católica.

tal facto preocupa-me relativamente enquanto cristã, mas nunca me tirou o sono. nunca discuti nem discutirei a minha vida sexual com um padre e muito menos com um bispo.

quando falamos de abusos sexuais, falamos de crimes, de criminosos compulsivos, quando são pedófilos.

de criminosos respeitados pela função que desempenham, de criminosos acima de qualquer suspeita.

«não conheço casos de pedofilia na igreja em portugal», afirma o senhor patriarca.

lamento que um homem tão inteligente, e pelo qual nutro respeito e estima, não saiba ler os sinais que o rodeiam, ou estes lhe sejam sonegados. há centenas de católicos que têm informações em sentido contrário.

houve e há abusos sexuais em instituições da igreja católica portuguesa.

segundo o papa bento xvi, quem os denunciar já não está sujeito a excomunhão como até há bem pouco tempo.

a associação onde sou voluntária, a rede de cuidadores, recebe várias queixas de situações com esta origem.

pedimos, e fomos recebidos pelo anterior presidente da conferência episcopal, d. jorge ortiga.

sabemos, também, que quem se atreve a denunciar abusos sexuais nas igrejas em portugal é objecto de processos-crime por difamação. é o país que temos.

amanhã é natal, as crianças deste país precisam de ter no sapatinho uma comissão independente de inquérito a todas as denúncias que foram encobertas pelo caminho, ou arquivadas por falta de provas.

como nos regozijaríamos todos se o senhor d. josé policarpo tivesse razão.

infelizmente, muitos como eu estão convictos de que só o seu amor à igreja portuguesa não lhe permite ver aquilo que nos vai fazer doer muito a todos.

mesmo que tenha 100 processos-crime por difamação, estarei sempre ao lado das vítimas de abusos sexuais – na família, nas escolas ou nas igrejas.

não foi para isto que jesus de nazaré veio ao mundo.

só a verdade é libertadora.

(*) igreja que não obedece à autoridade papal, tendo-se separado de roma no séc. xix.

catalinapestana@gmail.com