Alô Moçambique: quem ficou sem um rádio?

No tempo em que o homem foi jovem, o serviço militar era obrigatório.

no tempo em que o homem foi jovem, havia guerra em portugal.

no tempo em que o homem foi jovem, quase todos os mancebos saudáveis cumpriam dois anos de comissão de serviço numa das ex-colónias.

no tempo em que o homem foi jovem, na impossibilidade de nos proibirem de pensar, quartavam-nos a possibilidade de dizer ou escrever o que pensávamos.

no tempo em que o homem foi jovem, os que exerciam o poder sem ter sido eleitos acreditavam que os homens, se pensassem, representavam perigo para o regime.

no tempo em que o homem foi jovem, os que cometiam o crime de dizer o que pensavam eram penalizados com a chamada abrupta para o cenário de guerra.

esse foi também o tempo em que eu fui jovem.

tinha um namorado em moçambique, e escrevia-lhe todos os dias, mesmo sabendo que ele poderia passar um mês sem receber correio.

o homem, como alguns sabem, chama-se jaime froufe de andrade, e nos últimos anos tem utilizado as formas de comunicação ao seu dispor para resolver um problema que a guerra colonial lhe deixou em herança não desejada.

entre 1968 e 1970 incorporava a companhia de caçadores 2358 do batalhão de rangers 2842, sediada em tete, moçambique.

numa operação militar, a 17 de setembro de 1968, o jovem alferes miliciano e o seu pelotão capturaram um guerrilheiro da frelimo.

o guerrilheiro, tão jovem como os outros, tinha um rádio de pilhas, tipo garrafão electrónico, cuja imagem povoa algumas páginas da internet.

nenhum ser humano sabe como reagiria num contexto de guerra, quando o medo produz quantidades exorbitantes de adrenalina e o cheiro a pólvora e o ruído das explosões alteram os batimentos cardíacos e entorpecem a razão.

naquela época, a acção psicológica, nos batalhões de rangers, desempenhava o seu papel: os terroristas eram inimigos, ponto final.

e, na guerra, quem ganha tem direito ao saque: é assim desde que o homem é homem e aprendeu a resolver os conflitos pela força.

o jovem alferes apoderou-se, então, do rádio do ‘inimigo’, perante o olhar assustado e atónito deste.

passada a bebedeira emocional, o miliciano viu-se agarrado a um objecto que não era seu, saqueado numa guerra que não era sua a um inimigo contra o qual não o moviam quaisquer sentimentos negativos.

trouxe-o consigo no regresso, não como troféu, mas como problema não resolvido.

escondeu-o de si próprio, no fundo de um qualquer baú, convicto de que poderia esquecê-lo, como esqueceu outras mágoas de guerra.

em vão. mesmo sem pilhas, e bem escondido, o rádio pesava-lhe chumbo.

decidiu pô-lo à vista, para de tanto olhar para ele o esvaziar do conteúdo que lhe tirava a paz.

mas o efeito foi o contrário; o rádio parece dizer-lhe em cada momento: ‘se não pudeste evitar, remedeia’.

é nesta fase que cada um de nós entra na estória. jaime froufe de andrade precisa encontrar o ex-guerrilheiro, legítimo proprietário do rádio.

não sabemos se vive ainda, mas as famílias em áfrica podem ter mais de uma centena de parentes próximos.

se alguém, aí em moçambique, ouviu contar esta estória, dê, por favor, sinal de vida.

ajude a encontrar mais uma pedrinha para a construção da estrada da reconciliação total.

o homem quer dar um abraço a quem quiser recebê-lo em nome da paz – e devolver o garrafão electrónico que lhe queima o sono.

ajudemo-lo a fechar com dignidade esta página da nossa vida colectiva.

catalinapestana@gmail.com