Entre dois mundos

Pertenço à última geração em Portugal que dançava slows. Não cresci embebida pelo humor corrosivo da família Simpson, mas embalada pelas aventuras de A Dama e o Vagabundo. Aos dez anos não lia o Calvin, lia a Anita.

e como só existia um telefone em casa, com um fio muito comprido para preservar a privacidade precária dentro da despensa ou da casa de banho, não atravessei a adolescência a começar e a acabar namoricos por sms. sonhava com o modelo clássico dos filmes da disney, que terminam todos com a frase em forma de veneno que nos lixou a vida: ‘e depois casaram e foram felizes para sempre’.

foi então que o modelo oposto de vivência começou a insinuar-se na sociedade ocidental, com as dúvidas sistemáticas da geração x e a invasão da pornografia nos clubes de vídeo, ou comprada em grandes superfícies, e depois à distância de um clique na net. e toda uma nova cultura se desenvolveu a partir daí.

falar sobre sexo deixou de ser um tabu. a série sexo e a cidade reinou durante dez anos. em portugal, através dos meus livros e das minhas crónicas, eu própria contribuí para isso. acreditava, tal como acredito ainda, que todos os temas podem e devem ser falados, desde que o bom senso e o bom gosto dominem a conversa, e que tudo o que é considerado tabu e guardado a sete chaves da discussão à mesa atrasa o desenvolvimento de uma sociedade.

mas também acredito que o mundo não estava preparado para isto. hoje, os nossos filhos podem aceder a sites pornográficos. podem entrar numa smart shop e comprar, com a mesada que lhes damos, pensando que é para croissants mistos e leite com chocolate, drogas cuja composição ainda nem sequer foi testada, cujos efeitos são imprevisíveis e que podem causar danos irreversíveis.

a dança do varão entrou como modalidade em vários ginásios e a moda rendeu-se à tendência vigente com saltos excessivamente altos sobre os quais só uma equilibrista com carteira profissional consegue usar com glamour e sem sacrifício.

olho para a minha colecção de sapatos e de botas e considero a possibilidade de um leilão. gosto de os ter mas não gosto de os usar. eles simbolizam o que eu pensei que queria ser, mas que afinal não quero. será que preciso de me sentir sexy todos os dias para me sentir mulher? passo pelo facebook e vejo que afinal as top models também não são perfeitas e que sem photoshop todas as mulheres têm um bocadinho de gordura entre a anca e a cintura, ou os joelhos inchados. mas isso não me consola, porque este é o outro veneno que nos deitaram na sopa no início da vida adulta: nós, mulheres modernas, temos de ser sempre o máximo e parecer sempre as melhores em tudo, enquanto esperamos o melhor dos homens, que, destituídos dos papéis de protector e de provider, perderam o élan para executar as proezas que se esperam de um príncipe. nós agora é que somos os dragões. como vamos sair disto, ainda não sei.