Espectador da própria vida

Há livros que vivem para sempre no meu coração. Seda, de Alessandro Baricco, é um deles. Conta a história de Hervé Joncour, burguês francês que enriquece com o cultivo dos bichos de seda trazidos em caixas do Japão, ainda sob a forma de larvas.

à medida que a sua fortuna era tecida, hervé perdia um pouco mais do seu coração, num amor impossível por uma bela e misteriosa rapariga japonesa com quem nunca conseguiu sequer chegar à fala. em casa, a mulher, helène, assistia impotente ao afastamento cada vez maior do marido, sempre que ele regressava de viagem.

seda não é uma história de amor, mas uma história sobre a impossibilidade do amor. ou sobre a tristeza do amor não correspondido. ou talvez sobre o silêncio de uma mulher que ama alguém, sabendo que essa pessoa ama outra. e que, no entanto, se cala. ou ainda sobre a atracção inevitável que a vertigem pelo desconhecido opera nos corações aventureiros. ou um elogio ao amor platónico.

como todos os livros sobre o amor, é infinitamente triste e ao mesmo tempo muito belo, porque nos faz acreditar que nem o tempo nem a distância matam o que é eterno. nele, o amor não tem forma nem cor; tece–se dia a dia, transparente e quase igual a quase nada, semelhante a um frágil fio de seda.

helène é uma mulher alta, de longos cabelos pretos, tem uma voz encantadora e uma beleza triste e dócil – a das mulheres que aprenderam a aguardar pelo amor sem esperar nada dele. e porque ela estivera sempre ali, o herói viajante nunca tinha pensado se a amava ou não. vivia feliz, e isso bastava-lhe. ou talvez estivesse habituado a assistir à própria vida, que é o que fazem os que nunca conheceram o amor. mas hervé apaixonou-se pela rapariga que conhecera no japão, deitada no regaço de hara-kei, quem lhe fornecia as larvas e seu aliado nos negócios até se tornar um inimigo do coração.

conta a história que a rapariga, deitada no regaço do senhor da ilha, abriu os olhos para a vida e, nesse momento mágico que poderia mudar toda uma existência, hervé sentiu as portas do coração abrirem-se como uma flor ao sol. ela tinha um olhar cheio de nada, o formato dos olhos parecia estranhamente ocidental, como se estivesse ali por acaso.

hervé registou cada um dos movimentos por ela executados, como se estes revelassem toda a verdade das coisas, e guardou-a para sempre dentro de si. sem uma única palavra, prendeu-se a ela para sempre, e ela fez o mesmo. quando bebeu da mesma chávena, bateu as pestanas como o toque de um sino que só ele ouviu ecoar nas veias.

ainda voltou ao japão, mas nunca mais a encontrou. e é a partir daqui que a verdadeira história começa – uma viagem dentro de outra. é uma dor estranha morrer de saudade pelo que nunca se chegou viver, a dor de amar sem poder viver o amor. e a dor de sentir que quando o amor acaba, não se acaba de amar – nada é pior do que o vazio, a ausência do amor.

hervé continuará a assistir, qual espectador, ao correr da sua própria vida, vigiado pelo silêncio sofrido de helène, cuja morte lhe irá trazer todas as respostas. l