Ostras no bolso

Nunca vemos o amor chegar; só o vemos a ir embora», escrevi em Diário da Tua Ausência, o mais romântico dos meus livros, aquele que derrete os corações mais sensíveis e aborrece os mais cínicos. É verdade.

quando o amor chega, ainda que de mansinho e construído tijolo a tijolo, essa visão enche-nos a alma de alegria. mas quando parte, ou se parte em mil pedaços, não o vemos partir ou partir-se, porque não queremos ver.

ontem sonhei que caminhava sozinha numa praia. era uma noite de lua nova, o céu espelhado de estrelas iluminava o mar estranhamente calmo, a recuar devagar, como que a anunciar um tsunami. na orla das águas recolhidas vi um lençol de ostras abertas e comecei a apanhar as pérolas. sabia que a onda gigante podia chegar a qualquer momento e que, se isso acontecesse, levaria tudo à frente. guardei as ostras no bolso e só depois me afastei da praia. afinal, a onda não cresceu e não me engoliu – tive sorte.

há amores que secam como desertos por falta de amor e há os outros que acabam em agressões e insultos, em lágrimas e gritos, em caos e loucura, deixando para trás um cenário de irreconhecível desolação. são os amores nos quais o amor não morreu, apenas não resistiu à corrosão da crítica, à gestão gorada de expectativas, à incapacidade de investir, à indecisão permanente, ao medo de falhar – o medo que é o avesso da vontade e, por isso, se transforma no maior inimigo do amor.

as pérolas dançam-me nos bolsos. cada pérola é uma lição que aprendi: cultivar a paciência e a tolerância, não discutir sempre os mesmos assuntos, puxar o outro para cima mas aceitar que não corre tão depressa como eu, ou que não quer – ou pode – crescer ao mesmo ritmo, partilhar as alegrias com estranhos mas não as fraquezas ou os defeitos do outro, aprender a ouvir o que ele não diz e a ler nos sinais do que ele faz ou não faz as provas de amor ou a ausência das mesmas.

as minhas pérolas são como as pedras que deixo no caminho para não me perder no regresso a casa. pouso-as em cima da secretária onde escrevo. sei que cada uma delas me irá trazer ideias para crónicas ou para o meu próximo livro, já em ebulição, mergulhado num tumulto surdo, a ganhar corpo e alma a cada página que escrevo.

é difícil cortar laços; dói que se farta. dói o corpo da ausência do outro corpo, dói o coração que não pode parar de bater mas que queria dormir, dói a alma que se sente esvaziada, dói a raiva e o ciúme e o medo de perder quem nos é tão querido. mas, sobretudo, dói a sensação de termos falhado, de não termos conseguido fugir ao tsunami quando fomos nós que o criámos.

e depois, aos poucos, muito devagar, à velocidade do crescimento de uma árvore, uma nova ordem se instala. e são precisas várias luas para que o mundo sossegue e ainda mais umas quantas para que o conforto finalmente regresse.

um coração partido sofre sempre e por isso grita, queixa-se, é injusto e parcial. e só volta a si quando se reconstrói. até lá, nada mais se pode fazer do que viver em silêncio e em recolhimento, e as pérolas ficam como lições, para guardar o melhor, sempre e para sempre. l