Amamos o que conhecemos

O que se segue não é fruto de ficção, mas de casos reais com nomes ficcionados. Marina, 29 anos, contabilista, criada pela mãe desde os cinco porque o pai desapareceu, vindo Marina mais tarde a saber que era homossexual.

vive com pedro há dois anos, rapaz frágil, por quem nutre uma paixão intensa. há seis meses descobriu que pedro era homossexual.

rita, 34 anos, advogada, casada há dez com filipe. filipe sempre gostou de beber, embora não se considere um alcoólico porque, apesar de beber quase todos os dias, exerce um cargo de chefia num banco e mantém um estilo de vida equilibrado. rita é a primeira pessoa a dizer que o marido não é alcoólico, embora ele se embebede com frequência em reuniões sociais. o pai de rita morreu com uma cirrose fulminante seis meses antes do casamento da filha.

isabel, 38 anos, produtora de televisão. há anos que colecciona namorados muito bonitos e sempre mais novos, que acabam por ser sustentados por ela. organiza-lhes a vida, arranja-lhes emprego, protege-os como se fossem crianças. o pai de isabel é um economista reformado que em casa chamava mãe à mulher. a mãe de isabel é uma matriarca respeitada e endeusada pela família.

o que têm em comum marina, rita e isabel? nenhuma delas na sua vida adulta logrou escapar ao padrão familiar no qual cresceu. marina não percebe que ama pedro apesar de ser homossexual, mas precisamente por isso. o mesmo acontece com rita e com isabel; cada uma procura no parceiro a imagem do pai e age com ele da mesma forma que as respectivas mães agiram.

o que aconteceu durante o crescimento destas mulheres inteligentes, independentes e aparentemente resolvidas? provavelmente nenhuma conseguiu ter uma relação satisfatória com o progenitor que amava incondicionalmente: o pai de marina desapareceu, o pai de rita era ausente e morreu de repente, a mãe de isabel nunca lhe deu muita atenção. deste modo, é fácil ficar-se preso numa espiral auto-regressiva que se reflecte na busca interminável do afecto para sempre perdido e impossível de resgatar na vida adulta.

marina e rita já perderam os pais; isabel tem mais sorte: ela pode, enquanto adulta, reconquistar o afecto da mãe. não é evidente que isso faça desaparecer a sua tendência maternal e ultra-protectora em relação ao sexo oposto, mas a reaproximação entre as duas poderá trazer-lhe mais segurança e conforto, por forma a diminuir o seu impulso de protecção sufocante para com os homens.

gosto de homens calmos e meigos porque o meu pai era o homem mais calmo e meigo que conheci. gosto de homens bonitos e de olhos claros, porque o meu pai parecia um actor de cinema. gosto quando falam baixinho e me dão a mão porque era o que o meu pai fazia comigo. gosto quando são atenciosos, cuidadosos e empáticos porque o meu pai sempre o foi. e gosto que saibam pendurar quadros e fixar prateleiras em casa porque o meu pai era um faz-tudo. finalmente, gosto de homens que me ponham num pedestal como o meu pai sempre pôs a minha mãe. na verdade, também não escapei ao padrão familiar, porque não consigo apaixonar-me por ninguém que não seja parecido com ele. certo ou errado, amamos o que conhecemos e repetimos o que já vivemos. l