Corações calados

O coração é um profeta frágil que precisa de pregar a sua verdade para sobreviver. Os corações que se calam acabam por rebentar.

pertencem a pessoas silenciosas e estas pessoas são perigosas: metem para dentro o que pensam e o que sentem, num exercício de aparente contenção, que resulta num processo irreversível de envenenamento da alma. não consigo imaginar o peso e a dor que isso representa, porque o meu coração fala e escreve todos os dias comigo e com o mundo. o meu coração tem antenas e microfone, o meu coração tem voz e eu consigo ouvi-la todos os dias, mesmo quando ela me diz o que não quero escutar.

os corações calados são corações tristes, amargurados, derrotados, cépticos, quase cínicos e quase sempre cansados. saint-exupéry escreveu que a intuição é o olhar do coração. mas um coração que vê também precisa de ouvir e tem de conseguir falar, senão fica cego ou seco, o que é a mesma coisa. e um coração que não ouve, não aprende a falar, porque a linguagem do coração não se aprende na escola e nem sempre temos a sorte de a aprender em casa. como tudo o que é mais importante na existência humana, faz parte de um processo de evolução solitário do eu em diálogo consigo mesmo, com os seus medos, sonhos e fantasmas, com o seu carácter e os seus valores, com os seus sentimentos e com a sua razão.

gosto de ouvir o meu coração, mesmo quando ele me fala contra o bom senso e não respeita a lucidez, porque sei que o tempo e a realidade serão sempre os seus maiores aliados. acredito que a verdade reside não apenas no que pensamos, mas no que sentimos. na dúvida, o coração traz-nos respostas.

mas, para isso, é preciso ter um coração aberto, o que implica autoconfiança e optimismo. os medrosos, os indecisos e os pessimistas têm medo de muitas coisas, sobretudo do próprio coração. confiar no que sentimos não é só um exercício de coragem – também é um voto de confiança, em nós e nos outros. quando não acreditamos na nossa força e nas nossas capacidades, não conseguimos acreditar em nada, porque a realidade começa e acaba em nós.

quando não acreditamos em nós, confiamos nos outros para que nos guiem pela vida fora, como blanche dubois, mítica personagem de tennessee wiliams, em um eléctrico chamado desejo, magistralmente interpretada no cinema por vivien leigh e que lhe valeu o óscar de melhor actriz em 1952.

blanche era delirante e alcoólica, sofria de ‘doença nervosa’, a designação obsoleta para os maníaco-depressivos. o marido suicidara-se e blanche foge para casa da irmã, stella, entrando em choque com stanley, o cunhado, que acaba por desmascarar os delírios e as mentiras da cunhada e convencer a mulher a internar blanche. a última frase da peça é memorável: «blanche caminha triunfalmente de braço dado com o director do hospício, proclamando: ‘sempre confiei na bondade de estranhos’».

as pessoas de coração calado, que não acreditam no que sentem, acabam por se encostar às circunstâncias, ou aos outros, e quem se encosta às circunstâncias acaba por cair. ouvir o nosso profeta frágil, mesmo que esteja partido e destroçado, é sempre o melhor caminho, talvez mesmo o único caminho. não o ouvir, é persistir na roda do ratinho, onde vivem os que nunca saem da caverna, imaginando que o mundo lá fora não pode ser melhor do que a tristeza cinzenta e baça das sombras projectadas na parede. l