• passei um ano inteiro a investigar e a pensar sobre a recta final daquele governo socialista. mudei de opinião algumas vezes sobre o que tinha acontecido. sobretudo interiorizei um ponto: na recta final do seu mandato, josé sócrates tentou mesmo salvar o país de um resgate, com as armas que tinha à mão. fê-lo com um racional. melhor ou pior, havia pelo menos algum sentido lógico naquela sucessão de pec, de cortes dolorosos, de negociações secretas dentro e fora do governo.
• devo acrescentar que nada disso mudou a minha opinião geral sobre o próprio sócrates. primeiro porque sempre achei um erro fazer-lhe um julgamento de personalidade e não um julgamento político. segundo, porque entendo que sócrates foi melhor na chefia do governo sempre que a realidade o obrigou a agir. foi assim quando tomou posse, até ao início de 2007; foi assim uma vez mais quando quis evitar o colapso da ajuda externa.
• a questão central é que de 2007 a 2010, sócrates cometeu erros, sobretudo erros de avaliação sobre a situação real do país. pelo que se percebe da entrevista a clara ferreira alves no expresso, ainda não os interiorizou. só para dar um exemplo: quando diz ainda que a política de estímulos (que reagiu à crise mundial) “deu resultados”, esquece que foi ela que acelerou o processo de exposição total do país à desconfiança dos mercados e dos parceiros. é como se a posição relativa de cada país naquele tempo não tivesse importância no dinheiro que podia gastar. tinha e tinha muita – e eu tive esta discussão com josé sócrates algumas vezes, meses antes do nosso resgate. já agora, um acrescento: cada euro que foi posto na economia naquela altura teve um custo na curva de endividamento de que não nos vamos libertar nas próximas décadas. se alguém quiser estudar o fenómeno, pode chamar-lhe o multiplicador revertido. tinha graça pôr-lhe um número.
• foi por isso que, na minha opinião, quando sócrates fez tudo para evitar o resgate era já tarde demais (“resisti o mais que pude, mas a realidade impôs-se”, admitiu nesta entrevista). a tempestade perfeita da situação financeira portuguesa com a europeia não lhe deu espaço para fugir. a política à portuguesa – para a qual contribuiu, mas de que não é único responsável – não lhe deu tempo para mais. mas naquele ano de 2011 todos sabiam que era uma questão de tempo: o governo minoritário iria cair mais dia, menos dia.
• sobre esses dias loucos, deixem-me assinalar um facto curioso: hoje vejo muita gente à esquerda a elogiar a sua resistência final como acto patriótico. como já passaram uns anos, é mais fácil esquecer que esse acto de patriotismo não é diferente, nos princípios, daquilo que hoje faz o governo de passos para escapar a um segundo resgate: cortar salários e cortar pensões. interessante: a esquerda faz por esquecer aquilo por que jurou não lhe perdoar; a direita resiste a perdoá-lo, esquecendo que foi ele que começou a fazer.
• é justo dizer que, naqueles idos de março de 2011, o país acabou empurrado para a ajuda externa. para mim é fácil dizê-lo, porque no ‘dia d’ defendi a aprovação daquele pec4. sócrates vai agarrar-se a isso toda a vida: “ninguém sabe o que poderia ter acontecido”. será sempre verdade, mesmo para quem – como eu – acha que ia acontecer o mesmo: um resgate, só que mais caro do que aquilo que já foi.
• e pergunta quem me lê: mas então este governo de passos não nasceu de uma infâmia? lá vamos nós outra vez: o pec, que era um programa de resgate informal, foi feito nos bastidores; passos soube na noite anterior; cavaco não soube nada; dois dias depois houve uma gigantesca manif, da ‘geração àrrasca’, que juntou tudo quanto era gente a pedir a saída do governo. passos devia ter aguentado e deixar levar sócrates até ao fim? em teoria sim, devia. na prática, os que hoje lhe chamam infame são os que vão dizer a seguro para fazer o contrário ao próprio passos. como verão na discussão do programa cautelar, do segundo resgate ou do destino que nos calhar em sorte.
• o que mais me espanta, um ano depois, é a facilidade com que ainda se argumenta com certezas absolutas sobre o tempo que vivemos, sem tirar lição alguma do que já vivemos. de 2011 para cá, o país praticamente esgotou o empréstimo que pediu para se financiar. houve muita mais austeridade, enorme custo social, progressivas divisões políticas. e o inverso em serenidade, procura de soluções e racionalidade. é assim que nos aproximamos de 2014. não me surpreendo, portanto, que acabemos no mesmo: falhando o programa cautelar (um apoio que sócrates sonhou ter naqueles dias); seguindo para novas eleições (com mais um monte de ressentimentos); e com a troika e os investidores a exigir acordo geral para nos emprestarem alguma coisa mais.
• o triste é isto: se não nos serviu de lição a primeira, de que nos servirá a segunda?