Por que resolveu escrever este livro?
Sinto que tanto eu como muitos outros fomos injustiçados pela sociedade portuguesa, antes e depois do 25 de Abril. E sinto que é minha obrigação fazer justiça a quem foi injustiçado. Eu era a única pessoa em Portugal que podia escrever este livro. Já não havia mais ninguém vivo capaz de dar um testemunho.
Teve de fazer alguma investigação?
Absolutamente nada. Vieram ter-me à mão alguns documentos importantes porque sabiam que estava a escrever o livro. Mas que tenha feito investigação? Nenhuma, nada, foi tudo de cabeça.
Como conheceu Pavel?
Conheci-o na oficina do Arsenal da Marinha, mas nunca falei aí com ele. Eu entrei em 1931 e ele ficou pouco tempo mais, no máximo quatro meses. Afirmava-se comunista, mas eu não sabia que ele era secretário-geral da Juventude Comunista (JC). Depois conheci-o na intimidade. Os meus pais vieram de Espanha a convite do Partido Comunista Português (PCP) para tomarem conta da sede do partido. E ele, que já tinha entrado na clandestinidade e saído do Arsenal, foi viver com os meus pais. Eu ia visitá-los e aí tivemos um convívio muito, muito estreito.
Depois esteve mais de 40 anos sem o ver.
Sabia que ele tinha para o México e que se tinha tornado lá uma pessoa muito importante. Foi a partir da vinda dele a Portugal, a convite de Mário Soares, em 1976, que o reencontrei. Tive uma grande conversa com ele na minha casa. Foi fascinante. Ele era tratado no México pelos intelectuais por 'mestre Antonio Rodríguez'. Foi um homem invulgar, que tinha traços de génio. Mal chegou ao México começou logo a escrever artigos em espanhol. Sabia uma porrada de línguas e até surpreendia a família. A filha Zinia diz que foram uma vez à embaixada da Checoslováquia e que ele começou a falar checo! Esteve quase dois anos na China e, com a cabeça dele, acredito que tenha aprendido chinês.
De Francisco de Paula Oliveira, que parte da vida foi mais importante: como Pavel ou como Antonio Rodríguez?
Antonio Rodríguez, de longe. Até ir para o México tinha revelado qualidades excepcionais: não por acaso foi enviado de Moscovo para Portugal para substituir Bento Gonçalves como secretário-geral do partido. Quando aqui esteve em casa, contou-me a opinião da Internacional Comunista e dos chefes soviéticos sobre o PCP. Admiravam-se de no secretariado do Partido Comunista figurarem três operários de um nível excepcional. Diziam que era difícil encontrar nos grandes partidos três pessoas com o nível cultural e político de Bento Gonçalves, Pavel e José de Sousa.
Mas a fuga da prisão do Aljube, em 1938, acabou com a sua carreira de dirigente comunista.
Acusaram-no de ter fugido em conivência com a PIDE, uma infâmia incrível. No Aljube, encontrou um enfermeiro que tinha sido da JC, Augusto Rodrigues, que se infiltrou na PIDE e entrou no Aljube com o objectivo de ajudar um ou mais militantes a fugir. Com a prisão do Pavel elegeram Armando Magalhães, que esteve dois anos na União Soviética, secretário-geral interino. E ele quis transformar o lugar interino em definitivo. Então inventou. Escreveu uma carta ao comandante da Internacional Comunista, o argentino Victorio Codovilla, a dizer que aquela fuga era suspeita, que tinha sido feita em colaboração com um agente da PIDE. O Pavel disse que não tinha como se defender. E era verdade.
O Edmundo Pedro chegou a conhecer Armando Magalhães?
Não. Nessa altura eu estava no Tarrafal. O gajo foi expulso logo a seguir, esteve preso duas vezes e deixaram-no ir para o Brasil. É um traidor, deu cabo do Pavel. Ou antes, salvou-o. Utilizo no livro uma imagem que também aparece no testemunho da filha. Comparamo-lo à lenda da Fénix renascida das cinzas. Bate no fundo, é acusado de conivência com a PIDE, fica na miséria nas ruas de Paris, e depois vai para o México. No fim do livro está um artigo escrito por Pavel sobre a pintora Frida Kahlo, mas em que acredito que também estaria a pensar nele próprio, cuja ideia é a seguinte: só as pessoas especiais conseguem nas condições de maior desgraça fazer uma obra monumental. Escreveu muitos livros, e um deles fundamental, um tratado sobre a pintura mural mexicana. Teve várias condecorações, o nome em praças e escolas. Não é um tipo qualquer. Foi comunista até ao fim. Comunista, mas tinha repudiado o estalinismo. Era comunista no sentido revolucionário, de quem queria um mundo melhor. Era um homem puro.
Pavel foi vítima apenas de Magalhães?
Também do Júlio Fogaça, que veio do Tarrafal um ano depois da desgraça do Pavel e não se lembrou de tentar recuperá-lo. Mas o mais responsável de todos, last but not the least, o último mas não o menor, é de facto o Álvaro Cunhal. Só vinte e tal anos depois é que escreve uma carta ao Pavel a convidá-lo a regressar, quando toda a direcção do partido era da sua confiança. Atrever-se a enviar uma carta quando o Pavel já era uma figura fundamental da cultura mexicana, quando se tinha casado lá e tinha filhos…
Essa carta foi um insulto?
É praticamente um insulto, mas era para dizer que tinha feito qualquer coisa, para aliviar a consciência de culpado. Que grande pouca-vergonha.
Como teria sido se Pavel tivesse conseguido regressar de Paris com o apoio da Internacional Comunista?
Ah, eu escrevo aí. Ele provou ser melhor que o Cunhal. Por exemplo, foi praticamente o fundador da Juventude Comunista, que até aí não tinha influência nem actividade nenhuma. Sei do que estou a falar. Fui dirigente da JC, com o Cunhal, embora tivesse entrado muito antes do Cunhal. Aliás, há umas biografias do Cunhal que dizem que ele entrou em 1931. Isso é mentira. Ele entrou em 1934, estava eu preso. Só o conheci quando saí da cadeia. Fui eleito com ele para o comité central. Segundo o Francisco Ferreira, o Chico da CUF, ele foi-lhe apresentado pelo Fogaça em 1933. Como é que podia ter entrado em 1931? Mas ele tinha de ser o mais antigo de todos, isso faz parte do culto da personalidade. Ele entrou aos 20 anos e eu entrei aos 13.
O Edmundo Pedro foi precoce em tudo, inclusive em ser preso, o que teve consequências no casamento dos seus pais.
É que a minha mãe, que estava presa na altura, ficou muito chocada com a minha prisão e acusava o meu pai de ser o responsável. O meu pai enviou-me ao Castelo de São Jorge na véspera do 18 de Janeiro (de 1934, uma greve geral) para entrar em contacto com a célula comunista dos Caçadores 7.
Há ainda outro livro que quer escrever.
Sim, de outro homem que foi muito, muito injustiçado, que foi secretário-geral do PCP, e morreu nos meus braços: Bento Gonçalves. Conheci-o em 1933, quando ele reentrou no Arsenal da Marinha, vindo da deportação. A direcção do Arsenal propôs-lhe um lugar de chefia no departamento técnico. Recusou, como recusou o lugar de chefe da oficina. Era um operário dos pés à cabeça. O Bento tinha orgulho na ganga. Este Jerónimo de Sousa é de origem operária, mas esqueceu o Bento Gonçalves. É um cunhalista encartado. Quase tem vergonha de ter sido operário.