O segredo está nos dedos

“Mas é só um gajo?!”. Interrogações como estas que se ouviram, bocas abertas de genuíno espanto e maravilhamento, já vão rareando. Aconteceu na sexta-feira com a actuação de Mohammad Reza Mortazavi no Festival Músicas do Mundo (FMM), em Sines.

É um homem perigoso, este iraniano nascido um ano antes revolução que derrubou o xá homónimo, Mohammad Reza Pahlavi. Não pelas suas ideias políticas. Mas porque pode dar ideias aos gurus da gestão. Se estes administrassem orquestras e vissem como um homem só consegue encher um palco apenas com os seus dedos a tocar nas peles de um tambor, estaria aberto o caminho para o despedimento colectivo e a exigência de que cada músico se tornasse um homem dos sete instrumentos. Perigoso, também, porque depois do que se viu e ouviu daquele homem de ar lúgubre e frágil tudo o resto poderia parecer banal. Ora com o daf    (espécie de adufe), ora com o tonbak (tambor também conhecido como tombak ou zarb), ora ainda com uma versão mini de um tambor, os dedos de Mortazavi, por vezes bem mais rápidos que a vista, extraem uma paleta de sons e de ritmos tal que ao fim do primeiro tema já havia quem gritasse "Mestre!". 

Quando o virtuoso acelerava a cadência, a Avenida da Praia transformava-se numa inesperada pista de dança ao pôr-do-sol e envergonharia muito DJ que por ali passasse. Qual dervixe em dança rodopiante, Mortazavi parecia entrar num estado de abandono e iluminação, enquanto os seus dedos seguiam o seu caminho, cada qual com vida própria. O êxtase passou para a audiência, que exigiu um segundo encore do tocador radicado na Alemanha.

Antes e depois do persa, dois portugueses também tocados pelo dom do talento actuaram no Castelo de Sines. Pela força do seu passado, Júlio Pereira não tem nada a provar nem a revelar – comprova-se e saboreia-se o seu caminho coerente e de renovação nos caminhos da música popular.

Quando começou o concerto havia larguíssimas pessoas em fila (para um concerto gratuito), mais uma extravagância da ultra-zelosa GNR que neste ano manteve um braço-de-ferro com a organização do FMM por causa da entrada de crianças no recinto. Mas o povo foi entrando e o seu número surpreendeu o maior divulgador do cavaquinho. "Pensava que estava tudo a jantar", comentou. Mas não estava e foi um óptimo aperitivo para o que aí vinha. Acompanhado ao violoncelo, à viola e ao bouzoki, Júlio Pereira fez uma bem-humorada e descontraída viagem de norte a sul do país, com obrigatória paragem em José Afonso – "uma das razões" por que toca cavaquinho – e uma incursão em Cabo Verde, tocando 'Sôdade'. 

Já Gisela João, apesar de ter sido considerada a revelação do ano passado, ainda tem um caminho a percorrer, de se confirmar em palco. No FMM a prova foi superada com distinção e louvor. É desconcertante ouvi-la a cantar, poderosíssima e com uma presença arrebatadora, e segundos antes ou depois, ao falar para o público, com um fio de voz de quem aparenta uma insegurança e um deslumbramento juvenis e que está ali quase por engano. Mas não está e é um privilégio ouvi-la, quer com clássicos do fado como 'Não venhas tarde' ou a 'Casa da Mariquinhas', com letra nova de Capicua), quer ao fazer a sua versão de 'Quero é viver' de António Variações, quer com o seu repertório.

Seguiu-se outro talentoso e jovem músico, Tigran. O pianista e compositor arménio não tinha grande margem para surpreender o espectador habitual ou mais informado do FMM. No ano passado actuou a solo e conseguiu arrebatar o público que aguardava o seu partenaire, o percussionista Trilok Gurtu, que cancelara a vinda a Sines à última hora. 

Desta feita apresentou-se em trio, com o baixista Sam Minaie e o baterista Arthur Hnatek e confirmou que o piano clássico está cada vez mais para trás na sua epopeia musical. Ao fim do primeiro tema, perante os aplausos ainda de circunstância, perguntou, provocador como uma estrela rock: "Mas estamos na merda de uma biblioteca?". Não estávamos, mas em palco havia muito saber. Quer as sonoridades fossem inspiradas na Arménia natal, quer fossem mais jazz, mais rock ou até electrónica pura (além do piano, Tigran toca sintetizador e faz vocalizações e algumas experiências sonoras, como extrair som de um rádio a pilhas enquanto muda de posto). Não bastasse, terminou com um tema de atmosfera espacial. Seja em que género for, no que os dedos de Tigran tocam, transformam em ouro sonoro.

Ainda houve um caribenho (Anthony Joseph) e uma cabo-verdiana rendida ao reggae (Mó Kalamity) autores de um discurso politizado, mas o córtex já não era capaz de processar muito mais. A madrugada já ia alta e os milhares que dançavam ao som do roots reggae não queriam saber de dedos mágicos nem de subtilezas artísticas.

cesar.avo@sol.pt