O cangalheiro real do regime

Num dos papéis mais elegantes de George Clooney, no premiado filme Nas Nuvens, ele é o homem que as empresas liquidatárias ou em reestruturação escolhem para despedir ou fechar as portas com o mínimo de danos possível. Mascarado de Armani ou Zegna, gasta a vida em aviões, escritórios onde despede pessoas ou saneia contas e…

Em Portugal não sabemos reconhecer a qualidade de vários dos nossos. Mesmo nas situações mais mediatizadas glorificamos os que estão nas mesas fartas e esquecemos os que nos pisos inferiores fazem o que a larga maioria não quer, não pode ou não consegue fazer. Entre estar num lugar que promove emprego, estatuto e honrarias ou presidir a um salão onde se liquida, se constrói uma falência ou se enterram carreiras, não há dúvida possível. Poucos são, em todos os tempos, e sob as mais variadas formas, os que com gosto, profissionalismo e boa reputação aceitam ser carrascos.

Ninguém aplaude os que fazem o trabalho sujo. É a vida. Mas é também o que nos safa; com tanta amoralidade, que esse pingo de moral não se perca porque quando começarmos, fora das salas de cinema, a aplaudir os cangalheiros, mesmo que deles precisemos, estamos mesmo feitos e acabados.

Isto a pretexto dos desenvolvimentos do BES. Do banco bom e do banco mau. De um lado as contas limpas, o fundo de resolução, as promessas de futuro e as garantias de que, se tudo correr bem, Vítor Bento terá a sua glória em Roma. A aguardá-lo honras de Estado, coroas de louros, trombetas, marchas triunfais. Do outro lado, no banco mau que continua a carregar com o nome agora tornado maldito, estarão as dívidas, as imparidades, os empréstimos da família, as negociatas, os buracos. Se tudo correr bem na liquidação deste monstro de várias cabeças, Luís Máximo dos Santos, verdadeiro general Maximus, o George Clooney português, será presenteado com um discreto agradecimento e umas comendas de que a comunidade não terá conhecimento. As regras do jogo. O que tem de ser feito que seja feito mas longe da nossa vista, que alguém se ocupe das gorduras e da matança. Depressa e bem.

Luís Máximo dos Santos é o homem. Não é para todos. Não só presidirá ao banco mau como também liderou a comissão liquidatária do Banco Privado Português (BPP). Fê-lo com rigor jurídico e contabilístico, junção que o torna talvez o mais eficaz na função de cangalheiro real do regime – é licenciado em Direito com uma carreira de mais de duas décadas no Banco de Portugal. Sobre ele pouco se sabe. Como de Ryan Bingham/George Clooney, personagem que vivia entre aeroportos, balancetes de falências, hotéis e destroços. Não é destino que se deseje. Boa sorte a Maximus, o Clooney português.

É tão chocante a ditadura da maledicência como a do elogio. Porque se na primeira são ateadas fogueiras que incendeiam os mal-amados, na segunda montam-se idílicos cenários onde personagens se elevam ao Olimpo. É tão difícil defender alguém que é atacado pela comunidade como criticar os que, em cada momento, se elevam ao patamar dos indiscutíveis. A democracia está a transformar-se numa ditadura em que a maioria diz as mesmas coisas, gosta das mesmas figuras, utiliza os mesmos argumentos. Também o pensamento é escravo da aceitação dos outros.

Vemos isso na epopeia trágica de Ricardo Salgado e do BES. Nunca morri de amores pelo homem, e aqui o fui dizendo, mas é chocante ver os que eram omissos ou elogiosos serem os que agora estão no lado dos que pedem contas, exigem respostas e anseiam por justiça. Dirão que não sabiam, só que os sinais existiam e eram claros: os negócios não explicados, as ligações políticas, o controle económico da comunicação social, o papel de Salgado na derrocada do BCP, os apparatchiks da família em empresas, nos círculos mediáticos e nos sucessivos governos.
Autismo e impunidade. Duas palavras coladas aos que exercem o poder e o seu estatuto como se fossem donos do seu próprio destino para sempre, como se fossem escolhidos por Deus, como se nada os pudesse atingir. Só assim se entende que a equipa de Ricardo Salgado tenha ao que se sabe aumentado os financiamentos ao Grupo Espírito Santo, já depois de ter sido afastado e desobedecendo ao Banco de Portugal. Só quem se julga impune até ao fim, com o mundo a desmoronar à sua volta, como um personagem de Shakespeare, o ousaria arriscar. 

Para concluir algumas notas muito breves.
Mota Pinto seguiu os conselhos de Pedro Passos Coelho e não será chairman do banco bom.
Marcelo Rebelo de Sousa deixou de ser possível como candidato à Presidência da República. A sua ligação com Salgado ‘matou-o’ politicamente. Acontece.

O BES e Ricardo Salgado não cairiam com nenhum dos primeiros-ministros da história da democracia portuguesa. Desde o regresso da família a Portugal, em meados da década de 1980, Passos Coelho é o único político que nada lhe pareceu ter a dever. Fica o elogio.