A cultura portuguesa é uma fogueira pronta a atear

A decisão do reitor da Universidade de Lisboa, António Cruz Serra, de denunciar o contrato com a Companhia Artistas Unidos, de Jorge Silva Melo, é mais um sinal de decadência de um tempo. Uma consequência de uma crise política e dos políticos; das instituições e da relação entre elas e os cidadãos; da economia com…

De uma maneira desapaixonada, o que está em jogo? A Universidade de Lisboa, com o empurrão do último governo socialista e de António Costa, celebrou com os Artistas Unidos um contrato de utilização do espaço do Teatro da Politécnica. Acordou-se um valor que as partes começaram por respeitar. Entretanto a Direcção Geral das Artes cortou o subsídio para um valor perto de metade do que a companhia recebia, a situação complicou-se. Atrasaram-se as rendas, mas os melhoramentos que foram sendo feitos (o espaço estava quase ao abandono) tornaram o tema moralmente controverso. O reitor fartou-se e, lídimo representante da época, falou da sua justiça: os Artistas Unidos deviam 68 mil euros de rendas, o contrato fora cancelado e a Universidade de Lisboa comprometia-se a abrir concurso público para a utilização da Politécnica. 

Entendo o deslumbramento que o poder traz a quem o passa a exercer. Por vezes um deslumbramento abnegado, com sacrifício no trabalho e vontade de agradar ao tempo e às suas circunstâncias. O reitor, um dos mais altos responsáveis pela procura da excelência, do conhecimento e da educação em Portugal, provou a Nuno Crato que o ministro pode contar com ele. Não só apresenta resultados que provam a evolução da Universidade de Lisboa no ranking mundial como respeita as contas públicas, doa a quem doer; o esforço é para todos e não há excepções. Ministeriável.

Vamos por partes. 

Não me parece que as companhias de teatro e a generalidade dos artistas (inúteis dos tempos modernos) devam ter um estatuto fora da lei. Como todos os outros devem contribuir para o Estado e honrar os compromissos que celebram. É vital que o façam. Porém, o Estado deve encontrar soluções que salvaguardem projectos cujo interesse seja considerado prioritário para a cultura e identidade nacional. Se o Estado não assegura essa regulação, os países vão-se esvaziando de alma, tornam-se um mero exercício contabilístico, definham. Todas as civilizações que morreram, todos os países que entraram em decadência, venderam a sua cultura nas lojas de penhores onde pensaram salvar os dedos, é um facto.

A dívida dos Artistas Unidos é um paradigma. Como o é o desinvestimento nos cientistas ou o que se passa nas escolas. Quem faz e imagina os programas, por exemplo o de Português, imagina o que o seu tempo lhe pede. Por isso a nossa língua transformou-se nos liceus num exercício burocrático, um inferno gramatical, uma ditadura que mata a capacidade de imaginar. Viajar pela língua deveria ser um exercício de liberdade, uma regata de alma e identidade e não uma colher diária de óleo de fígado de bacalhau. As regras devem ser conhecidas com a procura dos livros e autores, com a história da literatura e a história da História. Mas infelizmente tudo isso vem depois, quando tantos já se perderam. Um equívoco. 

São 68 mil euros de rendas em atraso. É o mais triste nisto tudo. Porque Jorge Silva Melo, gostando-se ou não do seu percurso e do seu, como dizer, excesso de liberdade, é uma figura central da cultura portuguesa. Fundou a Cornucópia com Luís Miguel Cintra, traduziu, realizou, representou, tornou possível o conhecimento de tantos escritores, dramaturgos, actores, fez nascer os Artistas Unidos, projecto que, mais do que tudo, tornou a Palavra, o Silêncio e a Ideologia centrais num mundo onde as palavras, o silêncio e a ideologia foram reduzidas a pó pelo impacto do que é fast e do que é food. Um país que se alimenta do que precisa para enrijecer os músculos, não do que alimenta o cérebro e o sentido crítico.

O valor do que está em causa é uma humilhação para Jorge Silva Melo, 68 mil euros. Valor de qualquer juvenil do Benfica, Sporting ou FC. Porto. Quatro vezes menos do que a quantia que o Paços de Ferreira pagou pelo açoriano Minhoca, uma anedota. 

Em 2013, num livro de pensamentos, Só Entre Nós, escrevi um texto inspirado nos actores, no seu excesso, no seu desamparo, na sua sofreguidão de absoluto. Poderia ter dito algo de parecido dos escritores, pintores, realizadores, escultores. Gente desamparada, aos caídos, tratados como gordura que deve ser queimada em praça pública, como os livros nos regimes que se tornaram totalitários. Não estamos ainda aí, mas cuidado. 

«Sofro pelos actores. Ninguém como eles acredita tanto e não acredita nada. Ninguém como eles vive em tão duro combate entre as suas máscaras e a cara original que com o tempo tendem a esquecer. Ninguém é tão sensível ao elogio e crítico a ele, ninguém é tão dependente do amor dos outros e do ódio aos outros, ninguém precisa tanto de glamour e vive tão deprimido pela opressão da fama passada ou futura. Ninguém é tanto assim. Excessivo, sensível, eufórico, depressivo, insuportável de ego, vaidade e generosidade. Os actores. Bons e maus. Quase todos. Ninguém como eles».