Jessica Athayde: ‘Tinha vergonha de dizer que queria ser actriz’

Filha de pai português e mãe inglesa, cresceu em Inglaterra. Só voltou para Portugal aos 11 anos, altura em que aprendeu a falar português. Jessica Athayde sempre soube que queria ser actriz, mas a insegurança quase a traía. Estreou-se nos Morangos com Açúcar e agora, aos 28 anos, dá vida a Bárbara, a primeira personagem…

É uma das protagonistas da nova novela da TVI, Mulheres, e é a primeira vez que tem um papel adulto, de uma mulher vítima de violência doméstica. Como foi a preparação?

Quando recebi a personagem fiz imenso trabalho de pesquisa, sobretudo online. Mas só senti o clique quando fui com o meu marido na novela, o Luís Gaspar, à APAV. Construímos as personagens em conjunto porque sabíamos que dependíamos um do outro. Falei com mulheres vítimas de maus-tratos e com pessoas que lidam diariamente com estas situações. A verdade é que não sabia muito sobre o assunto. Tinha aquela ideia que havia homens que batiam em mulheres e que deviam ser doentes. Não conseguia perceber mulheres que ficavam em casa. Agora consigo ter outra perspectiva sobre essas mulheres. Conheci casos que, ao fim de anos, apresentaram queixa, eles foram presos e elas vão visitá-los à prisão. Descobri também que a violência começa logo no namoro e essas mulheres casam na mesma. E descobri que não estamos só a falar de classes sociais baixas.

Como a receberam essas mulheres?

Senti que não havia muita gente com interesse e vontade em falar no assunto. O que compreendo. Mas depois de a novela estar no ar passei a receber muitas mensagens de mulheres que já foram vítimas e que elogiam o meu trabalho. Mais do que as dores, o lado emocional, ter um homem a dizer constantemente a uma mulher que ela é uma merda, é muito violento.

Até como actriz isso se sente?

Sim, porque é real. Sinto que, enquanto estou ali a fazer aquelas cenas, há mulheres em casa a passar por coisas 20 vezes piores. Tenho a sorte de estar a viver um papel que, como actriz, me dá pica, mas é horrível porque sei que é real. Eu mesmo em lutas encenadas, magoei o ombro a ser puxada, estive uma semana sem me mexer bem. 

Sente que é a primeira vez que tem um papel de adulta?

Sim, comecei a trabalhar na TVI há dez anos, com um papel cómico e a verdade é que me é mais natural compreender os papéis cómicos. Mas precisava mesmo desta oportunidade. Já tinha feito um ou outro papel que não foi cómico, mas era sempre a filha mimada, a adolescente revoltada… Aqui estou numa novela que se chama Mulheres e eu sou uma dessas mulheres. Finalmente deram-me um papel de mulher: a Bárbara tem 33 anos e eu tenho 28.

Por que acha que isso acontecia?

Tenho consciência que tenho um timbre de voz que é jovem. E que o meu aspecto não é carregado. Compreendo que, na minha faixa etária, se dê prioridade a outras actrizes. Mas desta vez a TVI arriscou.

Ficou assustada?

Sinto-me sempre assustada, sinto sempre a pressão e a responsabilidade. Mas também é o que me dá pica para trabalhar.

Falou da sua voz. É algo que joga contra si?

Sim, porque me dá um lado mais infantil. Mas há outros casos: basta vermos a voz da Sandra Faleiro, que é uma actriz espectacular mas tem uma voz aguda. Não temos todas a voz sexy e rouca da São José Correia. Mas gostava! Durante anos ouvi dizer que não colocava bem a voz. Mas é a minha voz.

Essa análise é de quem já resolveu a questão. Mas não deve ter sido sempre assim…

Vivi mal com isso durante algum tempo. Era criticada pela minha voz. Mas ao fim de muitas aulas assumi que esta é a minha voz. Posso trabalhá-la para personagens, mas esta é a minha voz.

A questão da voz começou a ser comentada logo no seu primeiro papel, a Mimi de Morangos com Açúcar.

Sim, mas aí eu tinha uma voz forçada. A Mimi tinha a voz mais irritante do mundo.

O que recorda dessa primeira experiência?

Parece que foi há muito tempo… Acordava às 5h30 porque vivia no Estoril, apanhava um autocarro e um comboio, no Cais do Sodré tinha o transporte dos estúdios. Trabalhava de segunda a sábado da primeira à última cena. Chegava a casa às 23h e nunca me queixei. Hoje em dia estou uma semana a gravar e já levo as mãos à cabeça. Não há nada como o primeiro trabalho, os Morangos foram um projecto pelo qual tenho imenso carinho. O difícil foi depois, o nunca saber se há um projecto a seguir. Isso é que é difícil. Trabalhamos a recibos verdes e portanto não temos direito a nada. É uma profissão injusta. Mas foi a que escolhi.

Ainda assim tem contrato de exclusividade.

Tenho. Desde o primeiro momento que o assinei, soube que um dia irá terminar. Mas claro que é um conforto.

Como foi sentir a sua vida virada do avesso com o sucesso repentino dos Morangos?

Não tive a vida assim tão virada do avesso porque passava o tempo todo a trabalhar. E depois acontecia uma coisa: vivíamos numa bolha. Passávamos o tempo todos juntos, era quase um Big Brother. Estávamos sempre juntos e éramos todos amigos. As coisas mudaram foi depois. Quando fomos fazer o musical, que eu não queria fazer porque queria deixar a Mimi, comecei a ver outras actrizes já escaladas para os próximos projectos. E eu não estava porque não sabiam se era capaz de fazer um papel que não fosse cómico. Tive de ir a casting. E sentir que estavam a duvidar de mim. Nos Morangos estava tão em altas, fazia tão bem, era tão cómica, mas quando comecei a entrar no mundo real vi as pessoas a duvidarem de mim. E tive de voltar a provar que conseguia. Mas percebi que é sempre assim, temos de estar sempre a provar. Agora estou a tentar provar que não é preciso darem-me só os papéis de piriguete.

Sentiu o estigma de a verem como a personagem Mimi, uma betinha do Estoril?

Sim. Fazia-se a ligação que eu era loira, burra e que tinha realmente aquela voz. E depois entrei na Ilha dos Amores e fiz o papel de uma filha mimada, que também não resolveu essa imagem. Nessa altura fiz coaching porque não estava minimamente preparada, não tinha bagagem para trabalhar com actrizes como a Elisa Lisboa, a Susana Arrais… Acabei por me mudar para Lisboa e, em vez de passar horas em transportes, tinha aulas.

Sente falta de uma oportunidade no teatro ou no cinema?

Não sei o que virá a seguir a esta novela. Gostava de ter a independência financeira para dizer que ia descansar da televisão, ia estudar e bater às portas das companhias de teatro e tentar a sorte. Mas essa não é a minha realidade. Adapto-me ao que tenho e dedico-me a isso. E acredito que as coisas vêm com o tempo. Sinto que ainda vou ter essa oportunidade de fazer cinema ou uma grande peça de teatro. Até lá vou vendo outros colegas. E o importante é que continue a existir quer teatro quer cinema.

É inglesa de parte de mãe?

Sim. A minha mãe casou com um piloto português, mudou-se para cá e teve o meu irmão. Depois conheceu o meu pai, outro português. As minhas tias inglesas também estão todas cá, casadas com portugueses. 

Cresceu dividida entre os dois países?

Nasci e fui logo para Inglaterra. Cresci em Devon, que não é Londres, é countryside. Só voltei aos 11 anos. Até lá só vinha a Portugal de férias.

O que recorda desses 11 anos?

Da escola, sobretudo. E lembro-me que vivia numa rua em frente à praia e que passeava no areal cheio de alforrecas. E lembro-me de crescer a comer mal.

Só quando veio para Portugal é que começou a comer bem?

A minha mãe cozinhava muito mal (risos). Era cozinha de inglesa. Hoje em dia é uma excelente cozinheira e até vou lá a casa buscar comida. Mas não fui uma criança que cresceu a comer bem, como os portugueses.

Os 11 anos são uma idade complicada para mudar de país?

Pois são. Fui para uma escola inglesa e isso facilitou a adaptação. Mas quando vim para cá não falava uma única palavra de português porque o meu pai também falava comigo em inglês. Comecei a aprender a falar português aos 11 anos. Ainda hoje dou uns belos pontapés no português.

Sentia-se uma outsider?

Sim. Até porque a própria educação é diferente. A minha mãe era muito mais rígida do que as mães das minhas amigas. Eu tinha horários para cumprir, coisas para fazer, e se não cumprisse não tinha hipótese. Senti que a educação em Portugal era mais descontraída do que em Inglaterra.

Ao longo dos anos sente que se foi aportuguesando?

Sim, tornei-me mais descontraída.

Quando se começou a sentir confortável em Portugal?

Acho que foi só quando comecei a trabalhar e descobri aquilo que gostava de fazer. A idade tem sido uma coisa boa na minha vida. Trouxe-me outra sabedoria. Odiei ser adolescente, não fui daquelas que abraçou a adolescência.

Não era a miúda gira e popular?

Nada disso. Era magra demais, escanzelada, tinha os dentes tortos e grandes. Depois cresci… (risos) A verdade é que até hoje me lembro de coisas horríveis que me disseram na adolescência.

E já sabia que queria ser actriz?

Tinha vergonha de dizer que queria ser actriz. Tinha amigas que assumiam o que queriam, mas eu era muito insegura e tinha vergonha porque achava que me iam dizer logo 'pois, com esses dentes vais mesmo conseguir'. A primeira agência onde fui parar, olhou para mim e disse que eu ficava mas que tinha de arranjar os dentes. Nunca arranjei. Pouco tempo depois juntei-me à Elsa Gervásio, na Just, com quem estou até hoje, que desde o início me proibiu de mexer nos dentes. Volta e meia ainda oiço de alguns clientes que podia pôr os dentinhos para dentro. Aprendi a viver com as minhas imperfeições, mas foi um processo.

Como foi parar a uma agência de modelos?

Porque era muito magra e alta. Aos 14 anos já tinha esta altura, por isso estou sempre marreca. Aos 16 anos apanharam-me na rua, como acontece com muitas miúdas. Ainda fiz umas publicidades e trabalhos de hospedeira. Comecei a ganhar dinheiro com esses trabalhinhos. Mas nunca fui modelo, fico nervosa a tirar fotografias. Quando comecei a querer levar a sério o ser actriz, falei com a agência e comecei a fazer castings. E a não ficar.

Ouviu muitos 'não'?

Quando fui ao casting para os Morangos já tinha feito audições e nunca me tinham corrido bem. Estava descrente das minhas capacidades. Por isso, aos 17 anos, fui para Londres. Foi a decisão de uma adolescente que não tem a certeza do que quer fazer na vida. Dois meses depois de estar em Londres vim para as férias de Verão, fiz o casting e nunca mais voltei porque entretanto fui chamada para mais seis castings com diferentes actores. E fiquei.

Foi em Londres que conseguiu pôr fim à sua insegurança?

Sim, porque fui com 18 anos e fui trabalhar para um clube nocturno a servir copos. Não fui para lá com os meus pais a pagarem-me tudo. Tinha decidido que precisava de um tempo para experimentar outras coisas e fui viver com uma amiga que já lá estava. Voltei com mais confiança, algumas aulas e ganhei o casting para os Morangos.

Depois dos Morangos fez a Ilha dos Amores.

Sim, que para mim foi das melhores novelas que já foram feitas. Agora seria difícil ir fazer uma novela assim, nos Açores, por causa do meu cão, o Júlio. Sou apologista que quem tem animais tem que assumir as responsabilidades que estes envolvem, e o Júlio precisa de ser passeado. A minha vida anda à volta de gerir as minhas gravações com o que ele precisa. É o meu filho.

Recentemente criou um blogue e tornou-se uma espécie de embaixadora do movimento detox.

O blogue foi um convite da Media Capital, onde passei a dar alguma informação do meu trabalho e a passar receitas de batidos. Mas eu já fazia estes batidos há uns dois anos e publicava-os no Facebook. Já falava de super alimentos muito antes de eles serem divulgados cá. Nessa altura toda a gente virava o nariz. De repente virou moda. Mas eu não bebo estes batidos para emagrecer, nem sou apologista disso.

Há a ideia que tem uma má relação com a imprensa…

Com alguns. Para mim é muito complicado. Já falei da minha vida pessoal. Mas já há bastante tempo que tomei a decisão de não falar. Não vale a pena. Falo do que bebo, do que acho que pode ajudar outras pessoas, mas não tenho interesse em explorar também esse lado da minha vida. Claro que tenho má relação com alguns jornalistas porque mentem: dizem que fiz aquilo, que fui acolá. Nunca nenhuma fonte dessas foi verdadeira e portanto esses órgãos não merecem o meu respeito. Estão no meu caderninho preto.

Como reage?

Não mando vir, porque tenho de ser coerente e se falasse estava a abrir um precedente para se falar mais. Se um dia sentir que a linha foi pisada demais, se calhar… Mas claro que não gosto de ver a minha vida explorada nas revistas.

Se pesquisarmos o seu nome no Google, as primeiras dezenas de resultados dizem respeito a namoros, nomeadamente à relação com o João Manzarra.

Pois, claro. Percebo que algumas pessoas até têm interesse na minha vida pessoal de uma forma carinhosa. Mas isso é diferente de quem inventa mentiras. E eu tomei a decisão que quero focar-me naquilo que é importante: o meu trabalho.

raquel.carrilho@sol.pt