Fiel à palavra de Eça

Quando se estreou nas longas-metragens com Conversa Acabada, tinha então 33 anos, João Botelho dava início àquela que viria a ser uma longa relação entre as câmaras e a literatura. Naquela obra de 1982, a sua primeira de grande fôlego, propunha-se filmar os poemas e as cartas entre Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro. Ao…

Tempos Difíceis (1988), onde o universo vitoriano do romance homónimo de Charles Dickens encontrava um contexto contemporâneo e português (ainda que abstractizado), valera-lhe o título de filme “mais peculiar” do Festival de Cinema de Nova Iorque pelo New York Times, cuja repórter fizera notar a fidelidade ao texto original e a prevalência do “estilo visual” sobre a trama, “contada de uma forma concisa e pouco vivaz”. Quem És Tu? (2001), adaptação de Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett, na altura apontado como um dos favoritos para o Leão do Ouro no Festival de Veneza (sem no entanto ver concretizada a distinção), fora elogiado pela fotografia evocadora de El Greco, Caravaggio e Bacon, assim como por trazer ao grande ecrã, depois de Amor de Perdição (1978), de Manoel de Oliveira, um clássico do património literário luso. O Fatalista (2005) era um road movie fragmentado em episódios onde o livro de Diderot (Jacques, o Fatalista) ia (de novo) ao encontro da ideia de um Portugal contemporâneo. Já em A Corte do Norte (2008) o realizador adaptava Agustina Bessa-Luís a partir de um argumento deixado pelo realizador José Álvaro Morais, um filme feito “do ponto de vista das mulheres”, nas palavras do próprio, e no qual a escritora se reviu.

É costume dizer-se que os cineastas não fazem senão o mesmo filme continuamente, e não será de todo um espanto que Botelho – quem mais além dele? – se tenha atirado à mais famosa obra de Eça de Queirós, volume de mais de setecentas páginas, Os Maias.

A popularidade da prosa queirosiana ter-lhe-á valido a maior produção (luso-brasileira e com orçamento de um milhão e meio de euros) a que alguma vez teve direito. Mais de 50 actores, perto de mil figurantes, 11 semanas de rodagem, resultaram num corpo fílmico com três versões: dividido em episódios, para a televisão; com a duração de três horas, por enquanto no Cinema Ideal, em Lisboa, vindo mais tarde esta versão longa a ser exibida nos cineteatros do resto do país; e a outra, com menos 50 minutos, em exibição nas restantes salas – é nesta última que nos baseamos.

Com Os Maias – Cenas da Vida Romântica, Botelho assume um trabalho de “corta e cola” fidelíssimo às palavras do escritor. Tão submisso é ao texto original que ao resultado poderíamos chamar de resumo ilustrativo. Estaríamos no entanto a minimizar parte competente do labor de Botelho nessa opção de recorte das 'cenas da vida romântica': a preocupação, através do travelling quasi-fetichista e didáctico do genérico em revelar a matéria nos bastidores de que a ficção é feita – dos belos painéis pintados por João Queiroz para dar conta do ambiente de época ao guarda-roupa de luxo – para evitar que os diálogos publicados em 1888 não venham depois cair em dissonância; os movimentos da câmara guiados omissamente pelas descrições de Eça; a inspiração operática em consonância com a tragédia do incesto – como em A Corte do Norte, La Traviatta de Verdi volta a ecoar no grande ecrã; a distância, como no livro, da interioridade das personagens, não só pela narração do barítono Jorge Vaz de Carvalho como pelo uso das personagens a favor da caricatura do 'sempre provinciano' país; a escolha acertada no ponto de vista bifurcado entre o extasiante João da Ega, interpretado pelo actor-revelação Pedro Inês, e o Carlos da Maia feito de subtilezas de Graciano Dias, no seu conjunto um só alter ego do escritor.

À sombra de Oliveira

“Para que serve um Governo? – Apenas para contrair empréstimos e cobrar impostos!”. Proferida pelo conde Gouvarinho, é talvez esta a frase mais aguda do filme, no que à sátira político-social diz respeito. É evidente a sua actualidade, escrita aliás aquando da maior crise do capitalismo mundial, a grande depressão de 1876; não deixamos no entanto de sentir que é um retrato de costumes que se fica pela rama, especialmente lembrando a apropriação de Raul Brandão que Manoel de Oliveira fez em O Gebo e a Sombra.

A riqueza polissémica, a sobriedade da mise-en-scène e a plasticidade da luz/sombra daquele Oliveira parecem-nos inversamente proporcionais à 'crítica social' e ao aparato estético deste Botelho.