Para lhe respondermos, imaginemos que um jornalista sabe de um rumor sobre determinada figura pública, não podendo confirmá-lo, escreve uma carta anónima à Procuradoria-Geral da República onde refere as acusações que ouviu.
A Procuradoria, cumprindo a lei, abre um processo.
O jornalista noticia então no seu jornal que a PGR está a investigar uma suspeita assim e assado – e escarrapacha os rumores que não pudera publicar por falta de provas.
O jornalista foge a ser processado (pois limitou-se a dar notícia de um processo que entrou na Procuradoria…) e os rumores ganham foros de credibilidade (pois estão «a ser investigados»).
E assim se fecha o círculo da denúncia anónima.
Fecha-se um, mas começa outro: o calvário da vítima.
Se não reagir de forma categórica, a vítima passa num ápice de 'suspeito' a 'culpado'.
Quem cala consente – é o que se diz.
O ónus da prova transfere-se do denunciante para a vítima, ou seja, não é o denunciante que tem de provar as acusações que fez mas a vítima que tem de provar a sua inocência.
E como é muito difícil uma pessoa provar o que não fez, é facilmente condenada na arena mediática.
Este exemplo extremo (em que é o próprio jornalista a escrever a carta à Procuradoria) mostra por que razão não é aceitável fazer jornalismo baseado em denúncias anónimas.
Tal prática viola todas as regras jornalísticas e é deontologicamente reprovável.
Porque permite lançar lama sobre qualquer pessoa sem riscos para o agressor.
Mas o caso Freeport não começou com uma denúncia anónima? – perguntará agora o leitor.
A resposta é não.
Nas vésperas das eleições de 2005, houve, de facto, uma notícia publicada num jornal popular a partir de uma denúncia feita anonimamente – mas a imprensa séria não lhe deu sequência.
Acompanhei isso de perto porque era então director do semanário Expresso – e lembro-me que não tocámos no assunto exactamente por razões de princípio.
Só muito mais tarde, vários anos depois, o escândalo rebentou.
E rebentou, porque a polícia inglesa enviou à nossa Procuradoria um documento referindo a suspeita de luvas na aprovação do Freeport, envolvendo um ministro português – documento esse acompanhado por um vídeo em que um administrador afirmava ter-lhe pago 750 mil de euros.
O SOL noticiou então essa diligência policial dos ingleses – e o que aconteceu a seguir é do conhecimento público.
Mas com a notícia publicada na revista Sábado sobre Passos Coelho, tudo se passou diferentemente.
Apesar de se basear numa denúncia anónima, quase todos os jornais, rádios e televisões pegaram no assunto, dando-lhe uma gigantesca repercussão mediática.
Os pruridos revelados no caso Freeport pela imprensa séria agora não se verificaram.
Parece que muitos jornalistas e comentadores esfregaram as mãos: «O 'certinho' Passos Coelho, o 'impoluto' Passos Coelho, que fez os portugueses passar as passas do Algarve, afinal é igual aos outros!» – pensaram.
E deu-se até um fenómeno curioso: pessoas que tinham defendido com unhas e dentes a inocência de Sócrates foram das primeiras a pôr-se em bicos de pés para condenar Passos.
Chegados aqui, poder-se-á perguntar: mas o contrário também não é verdade?
Muitas pessoas que estiveram na primeira linha das acusações a Sócrates não se apressaram agora a defender a inocência de Passos Coelho?
É verdade.
Só que os casos não são comparáveis.
No caso Freeport havia factos e não apenas suspeitas anónimas: o ministério que Sócrates tutelava aprovara um outlet em área protegida nas vésperas de eleições e quando o Governo já estava em gestão.
E ao Freeport sucedeu o Face Oculta (que incluiu a tentativa de compra da TVI pela PT, em que havia o dedo de Sócrates); e ao Face Oculta sucedeu o Tagus Park (com o apoio de Figo a Sócrates também em véspera de eleições legislativas e em circunstâncias suspeitas); e pelo meio houve a divulgação de escutas comprometedoras e o envolvimento de pessoas próximas de Sócrates como Vara, Penedos ou Rui Pedro Soares em negócios obscuros.
Para já não falar nos casos do diploma, da coincineração ou dos mamarrachos.
Era muita coisa!
Mesmo assim, houve quem defendesse Sócrates até ao fim – e agora se tenha apressado a condenar Passos Coelho apenas com base numa denúncia feita anonimamente!
A coisa é tanto mais absurda quanto se sabe que Passos Coelho não tem um apartamento de luxo na Rua Castilho, não oferece jantares em restaurantes caríssimos, não passa férias em Aspen, não viveu um ano em Paris no selecto 16.º bairro, não viaja em classe Executiva, não veste fatos Armani, não foi ao Mundial de Futebol por sua conta, etc., etc.
Passos Coelho vive em Massamá, passa férias na Manta Rota, frequenta uma praia do povo e viaja em classe Económica.
Pode dizer-se que é tudo demagogia.
Será.
Mas nem por isso deixa de ser verdade.
Compreendo que as pessoas que viram as suas pensões e os seus salários reduzidos tenham exultado perante a hipótese de Passos Coelho ser apanhado pela Justiça.
Compreendo ainda que os partidos da oposição tenham aproveitado o caso para fazer luta política (embora, verdade seja dita, o PSD nunca tenha usado o Freeport como cavalo de batalha).
Mas já percebo menos que jornalistas profissionais e comentadores tenham agido como se fossem membros da oposição, atropelando a deontologia.
E que directores de jornais, de rádios e de canais de TV tenham ido na onda, assumindo a mesma atitude.
E não percebo de todo a posição de pessoas como o jurista Almeida Santos, que, além de sempre ter defendido Sócrates (não tendo, portanto, grande moral para condenar quem quer que seja), sabe que uma denúncia anónima não pode ser usada para nada.
Se o hábito de publicitar nos jornais denúncias anónimas se instala, regrediremos ao tempo da Inquisição – quando bastava denunciar um inimigo como praticante de bruxaria para o infeliz ser queimado na fogueira.
Aliás, a lei devia punir severamente a divulgação de denúncias anónimas.
Se a denúncia sigilosa à PGR é admissível (pois há certas denúncias que não podem ser feitas doutra maneira), a sua publicitação na imprensa é criminosa – porque expõe qualquer cidadão às tropelias e vinganças dos seus inimigos pessoais ou políticos.
Costa e o Rato Mickey
A vitória arrasadora de António Costa nas primárias do PS mostrou que António José Seguro estava derrotado à partida.
Costa não fez uma boa campanha, até desiludiu muitos dos seus apoiantes, mas representava uma nova esperança para o partido – enquanto Seguro, depois dos magros 30% obtidos nas eleições europeias, era já o passado.
Foram as europeias que feriram de morte António José Seguro, entregando o poder a quem aparecesse a disputar-lhe o lugar.
Como diria Maria José Nogueira Pinto, até o Rato Mickey teria vencido Seguro nestas eleições primárias do PS.