Só não o fez porque optou por uma tese doutrinária e jurisprudencial, segundo a qual, numa estrutura complexa como um Governo Regional, “nem tudo é assunto de todos”.
Ainda assim, segundo o despacho de arquivamento a que o SOL teve acesso, antes de optar pela “imputação individualizada”, a procuradora da República junto do Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP), Auristela Pereira, ponderou se, por exemplo, na aprovação de empreitadas de obras públicas e dos sucessivos orçamentos regionais – “formalmente equilibrados”, mas com receitas empoladas e despesas ocultadas – os oito membros do Governo Regional (que decidem em Conselho de Governo, órgão colegial) não terão incorrido nos crimes de prevaricação de titular de cargo político, violação das regras de execução orçamental, falsificação e abuso de poder.
Actos ‘ilegais’, mas para benefício da Madeira
Afastada a tese, o DCIAP optou por averiguar o grau de intervenção pessoal de apenas cinco arguidos: Ventura Garcês (actual secretário regional do Plano e Finanças), Luís Santos Costa (ex-secretário regional do Equipamento Social), Ricardo Rodrigues (director regional do Orçamento e Contabilidade), Dulce Veloza (directora de serviços do Orçamento) e Amélia Gonçalves (técnica do gabinete de controlo orçamental da extinta Secretaria do Equipamento Social).
O MP concluiu que, apesar de recorrentemente afrontarem regras orçamentais e de ser patente “uma série de ilegalidades”, agiram com o propósito de beneficiar a Madeira e a sua população. Logo, nenhum deles terá cometido os referidos crimes.
Para o DCIAP, não houve crime na forma como um ‘buraco’ de mais de 1.100 milhões de euros das contas públicas regionais não foi reportado às “instâncias de controlo”, designadamente às direcções-gerais de Orçamento, Tesouro e Finanças, Banco de Portugal, INE e Eurostat (estas últimas para efeitos de procedimento de défices excessivos).
Uma “distorção da informação”, reconhece o DCIAP, extensível à Assembleia Regional e ao Tribunal de Contas, que afectou “a credibilidade das contas do Estado perante as autoridades estatísticas e demais instituições comunitárias, (…) com repercussões negativas na imagem do país, credibilidade das suas contas e nas condições de obtenção de financiamento externo, violando os princípios da estabilidade e transparência orçamental”.
Segundo o despacho de arquivamento, o ex-ministro das Finanças, Vítor Gaspar, em resposta a um pedido de informação do DCIAP “sobre prejuízos decorrentes da actuação do Governo da Madeira”, garantiu ao MP que o ‘buraco financeiro da ilha’ não trouxe prejuízos ao Estado. Se havia dúvidas, a resposta do então ministro deitou por terra a sustentação de uma eventual acusação e a possibilidade de o MP, em representação do Estado, deduzir um pedido cível contra a Região.
Gaspar respondeu, a 12 de Março de 2013, que a intervenção do seu ministério – de diagnóstico das finanças públicas da Região no âmbito do Plano de Resgate Económico-Financeiro, que viria a ser assinado entre o Estado e a Madeira, a 27 de Janeiro de 2012 – nada detectou, pelo que nada haveria a reportar.
A resposta bate certo com o papel que a Inspecção-Geral de Finanças (IGF) teve neste processo, que foi baptizado de ‘Cuba Livre’. Decorre do despacho de arquivamento que a IGF, então liderada pelo actual secretário de Estado José Leite Martins, recusou fornecer meios à investigação. Em 2011, houve uma reunião entre Auristela Pereira, Cândida Almeida (então directora do DCIAP) e a IGF, em que esta negou “peremptoriamente” a “disponibilização de qualquer técnico, sem que para tal tivesse sido apresentada qualquer razão”.
‘Engenharia financeira’
De resto, nas 198 páginas do despacho de arquivamento é desmontada a ‘engenharia financeira’ utilizada pela Madeira ao longo de cinco anos para, por um lado, manter a frenética construção de obras públicas (201 empreitadas orçadas em 1,1 mil milhões de euros) e, por outro, angariar novas fontes de financiamento.
Foi o caso da candidatura, em 2008, ao ‘Programa Pagar a Tempo e Horas’, preparado pelo Governo de José Sócrates para transformar dívida comercial (a fornecedores) em dívida financeira (aos bancos). A Madeira, diz o DCIAP, só teve acesso a 256,6 milhões de euros porque o Governo de Jardim forneceu a Lisboa “informação que não correspondia à realidade”.
O despacho fala em documentos de reporte “falsos”, manobras para “inviabilizar o controlo” das contas por outras entidades, autos de medição, consignação e recepção de obras desconformes, despesas não cabimentadas e “empolamento das receitas orçamentais”. Os encargos assumidos e não pagos, no final de 2010, ascendiam a 792 milhões de euros, tendo sido passadas “inúmeras declarações de dívida” a empreiteiros para que estes se pudessem financiar junto da banca: foram identificadas 539 declarações, no valor global de 700 milhões de euros.
Em conclusão, Verificou-se um “quadro de reiterada insustentabilidade orçamental”, acrescida de juros de mora brutais, que recentemente o Tribunal de Contas (TdC) contabilizou em 505,8 milhões de euros (um terço do orçamento anual da Madeira).
Elementos do PND-Madeira, que denunciaram o caso, anunciaram que vão pedir a abertura de instrução no processo. O apuramento da responsabilidade financeira decorre entretanto no TdC, no âmbito de uma acção popular.