Desculpas paliativas

Sei, de um infeliz saber de experiência feito, que os cuidados paliativos em Portugal só existem para os ricos ou para os muito bem relacionados (condições que em geral se sobrepõem). 

A suposta rede nacional do serviço público tem listas de espera gigantescas – e depois de esperar (muitos doentes morrem entretanto, por acção combinada da dor e do desespero), é preciso ter a sorte de cair num desses escassos oásis onde a competência, o carinho e o respeito pelas pessoas são reais. 

A consideração pelo outro, a capacidade de nos colocarmos no seu lugar e de agirmos com ele como gostaríamos que agissem connosco, é muitas vezes invocada como um desejável dom humanista. O problema começa aí: o respeito pela dignidade alheia deveria ser um atributo de base em qualquer categoria profissional, e não uma qualidade suplementar, entregue ao livre-arbítrio individual. 

Este tipo de moralite cria exércitos de abusadores e oportunistas em todos os níveis da vida laboral e social –  Tchékhov e Gógol descreveram amplamente os seus efeitos devastadores. 

A falta de respeito, com o seu cortejo de inventivas ignomínias, está na origem da vergonhosa taxa de depressão nacional, bem como da crónica ausência de produtividade e de um resistente analfabetismo quanto ao trabalho em equipa. O país move-se por grupelhos organizados de interesses e intrigas, o exacto oposto do conceito de equipa. 

Todas estas forças negativas se exprimem com particular esplendor sobre os vulneráveis, os fracos, os doentes. 
Um doente não pode ser tratado como um ser de segunda; o paternalismo e a menorização (desde logo, o tratamento por «tu» que muitos médicos ainda aplicam aos doentes pobres) são, por si só, agressões. Os doentes têm o direito a ser informados sobre a sua situação clínica e a previsível evolução da mesma, e a decidir o que querem ou não fazer em relação à sua saúde. 

O tema da eutanásia surge ciclicamente em relação com este ou aquele caso concreto; o mais recente foi o da jovem norte-americana que mudou de estado para poder cumprir essa sua vontade e evitar um fim que considerava indigno. 

Esta mediatização é, também ela, composta por violência e desrespeito: que direito têm comentadores saudáveis a julgar a decisão de uma pessoa em situação-limite? Perguntaram à própria doente, na televisão americana, se não se sentia 'utilizada' pela associação de defesa do direito à eutanásia que a apoiava; ela poderia ter respondido que pior do que essa 'utilização' em defesa de um direito era a do canal televisivo que a entrevistava para captar audiências…   

A decisão de uma pessoa sobre o destino a dar à sua própria vida não deveria ser objecto de polémica nem iludida sob argumentações 'civilizacionais'. 

Há que garantir a liberdade e a individualidade da decisão, através de uma triagem escrupulosa que previna qualquer hipótese de homicídio. 

É possível criar legislação e fazer com que ela seja cumprida, como vários países já demonstraram: não colhe a ideia, tão portuguesa, de que nada se pode fazer porque não se sabe onde se vai parar. 

Mas a verdade é que antes de assegurar uma rede de cuidados paliativos eficaz, geral e democrática, Portugal não pode sequer pronunciar a palavra «escolha». 

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