Se pudesse pedir o que lhe falta, o que pediria?

Sei do dia em que nasci, ofereceram-me as primeiras páginas dos jornais desse Setembro de Estado Novo, estava quente, abafado. Sei a cor do meu primeiro cabelo. Sei da primeira namorada, do primeiro beijo, do primeiro amor e desamor, sei dos livros que li numa arrecadação, sei do nascimento dos meus filhos, da morte dos…

Isso é particularmente incomodativo para quem tem, como eu, a obsessão do planeamento. A de julgando saber tudo, no final das contas, concluir que sei pouco do que é essencial. Encontrei quem me dissesse que a obsessão pelo planeamento tem que ver com o dia em que nasci, com as estrelas, satélites e cometas. Virgem ascendente de Gémeos, parece. Afinal, o que sou, fui, serei e faço era subordinado e não subordinante. Não me conformei. Rasguei a organização e os esquemas, matei o planeamento de uma vida ideal, revoltei-me com o que me coube em sorte. Mas tenho más notícias. Voltei ao obcecado que era, cada um é mesmo para o que nasce.

Tem graça, voltei a algumas coisas que ouvi (ou julgo ter ouvido) na infância. Como se começasse a ser como as minhas avós, sempre com mais passado na cabeça do que presente ou futuro. É que há uns meses passei pela Lúcia e ela por mim. Nunca tal acontecera. Convenci-me de que fora a minha primeira namorada – em crianças brincávamos de mãos dadas, os meus pais recordaram-mo várias vezes. Alimentaram-me a memória. Entretanto Lúcia tornou-se cantora, actriz, mulher pública e agora, mesmo sem os meus pais, quando a vejo na televisão 'invento' histórias que não vivi e conto-as aos que estão comigo. É um sucesso garantido, a Lúcia. A minha primeira namorada com quem corria de mão dada, juro. Mesmo que não tenha acontecido, aconteceu. Só que ela passou por mim, num restaurante japonês gerido por chineses. E nada, nem um olhar. Não me reconheceu, decerto nunca me vira. Fiz questão de pôr a minha cara de criança, não havia que enganar. Se fosse verdade…

Isto dos amores… Para todos os gostos e cores. Os meus amigos homossexuais perguntam-me sobre a minha curiosidade e detestam o que lhes digo. Não por gostar de mulheres, isso dão de barato, mas por não compreenderem certos amores. Penso que talvez seja mesmo preconceituoso, ideia detestável e talvez verdadeira. Porque se gostasse de homens escolheria homens e não homens efeminados, entre o original e uma cópia jamais hesitaria. E o mesmo diria se fosse mulher e gostasse de mulheres, não escolheria uma que parecesse um homem. Estranhos são os nossos desígnios. Ou apenas os meus?

E ridículos tantas vezes. Até os amores míticos, os de infância (como o da Lúcia), até esses continuam tão ridículos como uma boa carta. Por vezes, apetece dizer, até por ser verdade, que a amizade é mais forte do que uma parte substancial dos amores. Porque é feita para lá do corpo, uma união de alma sem necessidade de outro reconhecimento. Depois há os amores de Amor que pertencem a um outro departamento, raras maravilhas que juntam florestas a oceanos e desertos áridos a jardins floridos. Excepções. Mas a amizade é, ainda assim, o único estado em que só precisamos do corpo para abraçar. Não é coisa pequenina, de somenos importância.

Mais vale não gostar de amar? Não é isso que defendo, era só o que faltava. Digo outra coisa. Digo que se me dessem a escolher entre a modorra de não conseguir amar e a infelicidade de não ser amado, escolheria sem qualquer hesitação. Porque prefiro as lágrimas à secura. Quero corresponder e ser correspondido, mas se não o conseguisse preferia corresponder a ser correspondido; antes poder amar do que não consegui-lo, antes sofrer do que viver todos os dias como um cacto.

E já que estou em efabulações da imaginação, conto-vos um sonho recorrente em que imagino um bar em que pudéssemos pedir o que nos falta. Absolutamente tudo, menos o óbvio. Nas primeiras noites surgiriam garimpeiros, demagogos e infelizes sem ideias, mas logo os pedidos de felicidade, dinheiro e saúde dariam lugar aos outros, aos permitidos. O que pediria? Talvez um pouco de loucura. Não a que se vende em pastilhas artificiais ou a demencialmente clínica, mas a outra… a necessária aos que precisam de encontrar um caminho próprio. Sem ela nunca teríamos a coragem de cortar o cordão que nos prende ao medo de falhar.