Em A Noite Mais Longa recorda a noite de 6 de Setembro de 1968: Salazar é operado de urgência e Antenor Patiño dá 'o baile do século'. Como surgiu a ideia para o livro?
Queria fazer um livro sobre um dia, o que permite uma concentração dramática e cenográfica. Portanto, estava à procura de um dia que justificasse um livro. Até que surgiu esta hipótese da cirurgia do Salazar. E é conhecida esta coincidência das duas coisas acontecerem na mesma noite, o que permite dois registos diferentes. Há um acontecimento dramático com o Salazar, uma cirurgia de emergência que vai representar a sua saída do poder e a festa, um acontecimento de exuberância e comemoração. Achei interessante por se ligarem, não só por acontecerem na mesma noite e a poucos quilómetros de distância, mas por várias personagens que se vão cruzando ao longo daquelas 13 horas nos dois acontecimentos. Salazar tem um grande interesse pela festa. E Antenor Patiño, sendo um dos homens mais ricos da época e passando dois meses por ano em Portugal, tem uma relação de simpatia com o regime e Salazar. É engraçado: na festa estão os representantes da cúpula política e económica do regime, que se estão a divertir sem saberem que o tempo deles está a acabar, naquele preciso momento, a poucos quilómetros de distância.
Não faltam livros sobre Salazar. Não estarão as pessoas saturadas?
Achei a história suficientemente boa para valer o risco. E tentei contá-la de forma narrativa, para o que usei uma série de fontes que permitem estabelecer com rigor diálogos, ambientes e acontecimentos, tanto na parte de Salazar, como na da festa Patiño. Espero que as pessoas não estejam assim tão fartas de Salazar.
E o que traz de novo o seu livro?
Uma das principais fontes é um manuscrito inédito do último secretário de Salazar, Anselmo Costa Freitas, que escreveu uma espécie de memórias daqueles dias, num bloco de notas de 83 páginas, onde relata o que aconteceu com muito detalhe: os diálogos, os ambientes, como as pessoas estavam vestidas, como se movimentavam. Esse manuscrito estava guardado pela família dele, pela viúva. Aí há coisas novas. Depois, na parte do Antenor Patiño, fui falar com o Nuno Vasco, jornalista do Diário Popular. Para a festa tinham sido convidados apenas dois jornalistas portugueses: a Vera Lagoa, do Diário Popular, e o João Coito, do Diário de Notícias. Depois houve três jornalistas que se infiltraram. Um deles foi o Nuno Vasco, como criado especialista em vinhos. Tive várias conversas com ele durante a pesquisa para o livro, em que me contou os bastidores.
Embora a queda da cadeira, no Forte de Santo António, Estoril, seja um episódio muito conhecido, poucos sabem que a queda se deu no início de Agosto…
Muita gente estava convencida de que se tinha dado no dia da cirurgia ou um ou dois dias antes, porque Salazar pediu segredo. Há várias teorias sobre o dia da queda. Eu defendo que foi a 1 de Agosto. Salazar caiu da cadeira quando ia começar a ser tratado pelo seu calista e bateu com a cabeça. E pediu segredo ao calista. Depois a Dona Maria [a governanta] ouviu barulho, desceu, e Salazar também lhe disse para não contar a ninguém. E não quis chamar o médico, o Dr. Eduardo Coelho, que iria ao Forte a 6 de Agosto, para uma visita regular. Andou com dor de cabeça até que o médico, no dia 6, lhe chama a atenção para a necessidade de estar atento a sintomas, devido à possibilidade de se ter formado um hematoma, como dores de cabeça, dificuldade em mover braços e pernas, na fala, etc. Mas Salazar vai desvalorizar todos os sintomas que vão aparecer: dores de cabeça, dificuldade em baixar-se, a levantar-se, a escrever…
Porquê?
Ele está a meio da sua última remodelação governamental, polémica dentro do regime. O Presidente da República, Américo Thomaz, foi contra algumas das escolhas que Salazar fez, tal como alguns conselheiros próximos de Salazar. E estamos a falar de um problema de saúde do chefe de um regime autoritário. Já havia um grande secretismo em relação ao seu estado de saúde. Aqui, mais ainda. Foi o que levou ao mistério à volta da data.
Publica uma carta escrita pelo calista de Salazar datada a 1 de Agosto, que refere a queda…
Sim. A carta está na Torre do Tombo, e foi publicada há anos pelo embaixador Fernando de Castro Brandão. Mas o mais interessante é o mistério. O regime assentava em Salazar. Acreditava-se que havia um plano da oposição para criar um movimento tumultuário assim que se soubesse que Salazar estava morto ou em perigo de vida. Portanto, ele estava convencido de que quando se soubesse da notícia iria existir um movimento insurreccional. E há dois níveis de segredo: o que é mantido por Salazar até ao dia 6 e o segredo durante aquelas 13 horas. O regime só vai revelar o que se passa às 9h da manhã do dia seguinte.
E não completamente…
Houve um boletim clínico elaborado pelos médicos, que o leram, na Cruz Vermelha, ao Presidente da República e outros membros do Governo. E houve duas palavras retiradas: Américo Thomaz achou que a referência à cirurgia se ter dado na madrugada dava um ar de urgência e gravidade à situação e pediu para trocarem madrugada por noite. E o subsecretário de Estado da Presidência, Paulo Rodrigues, pediu para se retirar a expressão intracraniano pela mesma razão. O regime não queria esconder a cirurgia, queria controlar o fluxo de informação.
Os dois acontecimentos, embora amplamente noticiados, deram pouco acesso aos jornalistas.
A madrugada da cirurgia foi completamente vedada, foi apenas preciso lidar com um jornalista d'O Século que estava à porta do hospital por acaso. Na Festa Patiño, há uma relação um bocadinho ambivalente com os jornalistas. Por um lado, há uma vontade de projecção da festa por parte do Antenor Patiño, para o que vêm muitos jornalistas internacionais. Por outro, limita-se a entrada de jornalistas portugueses à Vera Lagoa e ao João Coito. Há três jornalistas que se infiltram: o Nuno Vasco como criado, o Nuno Rocha como engenheiro especialista no sistema electrónico, e um repórter fotográfico italiano como motorista da Gina Lollobrigida, que lhe leva a máquina fotográfica debaixo da estola. As reportagens são publicadas e o Antenor Patiño tem uma reacção engraçada. Pelo menos ao Nuno Vasco, manda ligar a dizer que tinha achado muito graça e a convidá-lo para ir à quinta. Se fosse hoje, processava-o por invasão de propriedade. Mas foi um blitz autêntico de informação no mês antes da festa. Não se falava de outra coisa.
A festa teve 1700 convidados.
Não era uma festa grande apenas no plano português. Seria uma festa grande em qualquer país. E teve repercussões em todo o mundo, foi notícia no New York Times, na Time, nos jornais franceses, em todo o lado. As pessoas que vieram representavam significativamente o PIB mundial, muitos dos principais milionários da época, como o Henry Ford II, representantes das principais casas reais e actrizes como a Audrey Hepburn, a Gina Lollobrigida, a Zsa Zsa Gabor, costureiros como Givenchy e Valentino… Esta festa acontecer em França ou nos EUA seria igualmente importante.
Estiveram também presentes altas figuras do regime que na mesma noite passaram pela Cruz Vermelha.
Exactamente. Salazar tinha uma relação ambivalente com a festa. Publicamente e politicamente, queria que houvesse um afastamento do regime, porque o país estava numa guerra em três frentes em África, com soldados portugueses a serem feridos e mortos. Fez saber aos ministros que não queria ter o desprazer de os ver em festas. Mas, pessoalmente, estava curiosíssimo pelo que se passava nas festas. Vera Franco Nogueira, mulher do ministro dos Negócios Estrangeiros, foi às festas e tinha como missão contar-lhe os detalhes. E houve quem lhe pedisse, por telefone ou por carta, permissão para ir à festa. E ele permitiu. No início dessa madrugada, o núcleo de pessoas que sabe o que se está a passar com Salazar é muito reduzido. Depois, a pouco e pouco, e de forma contrariada, vai-se alargando o núcleo dessas pessoas. Há várias discussões sobre quem deve ser informado, chegando-se, até, a admitir a hipótese de o Presidente da República não o ser. Mas à medida das necessidades, vão alargando o número de pessoas que sabem da cirurgia. E algumas estão na festa, acabando por ir, ainda de smoking, para o Hospital da Cruz Vermelha, para perceber o que se passa. Aliás, antes de entrar para a sala de cirurgias, Salazar, que sabe que as filhas de Américo Thomaz tinham sido convidadas para a festa, pergunta-lhe: 'Então como está a correr a festa?'.